CRÓNICA DA CULTURA
Um imenso ouvido
Descia a ruela de terra batida que ia dar ao pinhal dos medos. Normalmente cantarolava durante o percurso, ou não soubesse que assim o medo se confundia pelo descaramento provocativo ou encantatório de um qualquer cantar. Aí chegada, o perfume das pinhas esvaziava-me dos receios todos. Baixava-me, olhando fixamente para o meio das espigas agrupadas aos pares que se soltavam dos pinheiros, a fim de encontrar a pedra adequada ao partir dos pinhões. Depois, sentava-me no chão e ali fazia a refeição que me dava forças para não temer a chegada à saibreira dos cães.
Antes desta, eu tinha ainda de fazer um pequeno percurso, a que chamara o ainda-não-mundo. Era terra à semelhança de nada. Terra temida mesmo pelos agricultores locais: terra sem língua própria ou sequer revés.
Quase corria a fazer este caminho, mas sempre atenta aos cães da saibreira que me viessem fazer frente como já acontecera diversas vezes. E lá chegava ao local que sempre achei ser só de mim conhecido. E ali contava tudo. Dizia do pai da mãe, da avó, das criadas, das amigas, dos irmãos, do Tim-Tim, de Jesus, da vaca que parira, do formato das foices, dos poderes do pão sozinho face às brasas que o coziam, das cruzes desenhadas nas tampas dos fornos de pedra, dos queijos lá alto em cestos junto ao telhado das adegas, e só depois me atirava a falar da pura salvação ou da pura perda do mundo que entre as minhas mãos tinha uma ideia nítida entre princípios opostos.
Surgia-me então ao pensar um imenso ouvido. Devagar, uma realidade aos poucos e poucos revelava-se física e não fragmentada da Coisa que era poder e revelação. Peripécia de lógica que enfim me acalmava e me permitia fazer perguntas ao acesso à liberdade.
De olhos fechados prometia voltar a este imenso ouvido, tessitura que nunca me levara ou levaria do zero para o Nada.
Teresa Bracinha Vieira
Julho/Agosto 2017