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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

 

Fiz a terceira classe numa escola de aldeia por precisar que bons ares me recuperassem de tremendas alergias. Eu e a avó e a criada ficámos numa das casas de férias de meus pais, que me inscreveram nessa escola para que não perdesse o ano. Enfim, não só não o perdi, como foi o ano em que numa escola primária mais aprendi acerca de tudo e fui muito, muito feliz. Exclui-se desta felicidade que a professora da dita escola, a mim, fingisse que me dava reguadas - eu era a menina fina – e às colegas as ditas reguadas lhes deixassem as mãos marcadas e inchadas. O meu único contributo à correção desta injustiça, passou a ser o de eu começar a chorar muito alto, desde que as reguadas às minhas colegas começassem, e mal a professora as interrompesse e me chamasse para indagar de tão forte choro, eu respondia

 

Dá trauma professora! O meu pai diz que do trauma faz-se queixa à polícia.

 

E pronto, as reguadas terminavam logo ali, e eu sem saber o que era trauma e por óbvio o meu pai nunca dissera aquilo que eu ali afirmara.

 

Assim passei a heroína naquela escola e as minhas colegas, até as da quarta classe - pois estudávamos todas na mesma sala da 1ª à 4ª classe -, davam-me em troca a possibilidade de lhes conhecer os esconderijos das histórias dos beijinhos, em relação às quais eu nada perguntava por não perceber o interesse, mas quanto aos esconderijos, achava-os maravilhosos, cheios de fantasia e fantasmas bons e, foi para um deles que corri quando o Tim-Tim caiu e magoou-se num local onde não era provável que o salvassem. Ali, descobri, naquele dia, o interesse dos beijinhos e enviei muitos ao Tim-Tim dando-lhe força para não ter medo.

 

Desde então, desde esta escola, descobri a maravilha dos caminhos de vinda para casa, coisa inexistente em Lisboa. Cantávamos a tabuada toda durante o percurso 2x1 =2 e 3x4=12/3 e prova dos 9 e prova real e tudo o mais que fosse e sobretudo se calhasse em verso, nós o dizíamos a cantar pelo meio dos campos. Também comíamos umas florinhas amarelas cujo caule era adocicado, e que metíamos dentro do pão, feito na casa de forno de lenha de alguma colega. Alguma delas nos disse que se comêssemos estas florinhas, a falecida costureira de uma velha casa ali perto, nunca nos faria ouvir o dar ao pé no pedal da máquina, envolvendo esse ouvir alguma carga de coisas más que aconteceriam. Por esta razão quis comer também umas bolinhas vermelhas de umas plantas que ali vira e, foi uma menina da 2ª classe que me gritou logo

 

Essas não, minha parva, essas são rebenta bois!

Rebenta bois? Perguntei.

Sim, se rebentam bois o que farão a ti?

 

Enfim, não pedi mais explicações e só chamei a atenção em casa para a minha avó ter cuidado com elas, mas a avó disse-me que as que usava ou eram de piripiri ou de pimenta.

 

Meu Deus! as coisas semelhantes e diferentes afinal e que eu desconhecia! Como era possível em Lisboa encontrar rebenta bois, se bois não eram visíveis, ao menos no bairro onde morava.

 

Por troca de ideias de brincadeiras boas, aferidas por mim como tal, eu fazia às minhas colegas a caligrafia – a umas 7 colegas - dentro dos cadernos de duas linhas, e confesso que nunca achei trabalho tonto, ainda hoje acho um triunfo gráfico que implica beleza e legibilidade.

 

Depois vinha o dia do pão por Deus e lá íamos todas bater à porta de casa de cada um a pedir pão por Deus – fosse lá o que isto fosse, era tradição e pronto - e receber laranjas e uns tostões pelo pedido que logo entregávamos ao pároco. Noutros dias, vinha a Sagrada Família passar uns dias à aldeia, tocando o sino da capela próxima, excitadamente. Esta Família, às vezes, pernoitava em casa de ricos com o consentimento do padre que a conduzia até às respetivas moradas. Escusado será dizer que perguntei logo à avó se éramos ricas para eu poder examinar o que lá ia por dentro da redoma onde vivia a Sagrada Família. Em rigor, uma colega minha chegou a dizer-me que em casa da Sagrada até havia bonecas com longas tranças e que as bonecas as faziam sozinhas! Ora, descoberta esta, fazia-me logo contar algo à altura, e também lhes expliquei, muito baixinho, às minhas amigas e colegas, que não havia milagres pois 2x3 eram 6 e pronto, alguma que desmentisse! Mas, um dia, uma delas contou à minha avó este segredo e lá levei com duas rezas de terços antes de dormir.

 

Não havia net, por óbvio, havia musgo que se arrancava com os dedos para levar para o que fosse o presépio de cada um. Também nos perguntavam sempre na escola, a que dinastia pertencia D. Afonso Henriques. E bem recordo que, aquando de uma destas perguntas, a minha colega de carteira me disse a rir e com a cabeça encoberta pelos braços

 

Este sei sempre. É o que bateu muito na mãe dele para a gente hoje morar aqui.

Ao que acresci

E se te perguntarem que rios conheces na Guiné, deves dizer: todos!

 

E por esta e por outras lá voltei a chorar alto para que a professora não lhe batesse mais pois era trauma de que o meu pai apresentava queixa à polícia.

 

Uma maravilha esta minha 3ª classe! Uma bênção aquelas minhas alergias.

 

Teresa Bracinha Vieira

Novembro 2017

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