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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

 

O nonsense pelo nonsense

 

A tarde era soalheira como o eram muitas das tardes vividas naquele alpendre da chamada casa grande na ilha de S. Miguel. Todas as cadeiras de vime, com largas almofadas queixosas do uso, estavam viradas para o mar. Em cima da mesa o bule com o chá fumegava ao lado do bolo de laranja, posto que ocupava sempre ufano, naqueles domingos em que por volta das 5 da tarde lá chegava o prior para deitar conversa fora com os donos da casa grande e fazer as meninas, Antónia e Bernadete, escreverem as redações sob sua sugestão temática.

 

A de hoje parecia-se com todas as dos outros domingos, mas fingia-se não descortinar. E lá começaram as obrigadas dotadas a escrever sobre A Alice no País das Maravilhas e a sua amiga, a Gata Borralheira.

 

Depois leu-se em voz alta:

 

Uma vez uma menina muito importante transformou-se em gata. Ninguém dera conta das possibilidades que a menina tinha para assumir a nova condição e sobretudo usar coroa e manto de chinchila quando espreitava o pobre gato preto que ao final da tarde lá ia aceitar os ossos que ela lhe dava. Estes ossos eram, pela gata borralheira, partidinhos miudinhos para que o gato se engasgasse, fosse parar ao hospital e a gata muito piedosa o pudesse acompanhar e de indispensável enfermeira se tornasse sua mulher promovendo-o a duque da casa grande. No dia do casamento quem levaria a cauda do longo vestido com véu de arame de capoeira seria a grande amiga, Alice, rapariga que vivia de maravilha em maravilha até ao dia em que se picara no arame do véu do casamento da amiga, e, logo se transformara numa madrasta má. Então a agora madrasta, vestida de vestido de horrível gosto, dobrara com cautela, um pouco do arame do véu da noiva, de tal modo que, quando chegada perto do altar, picou com ele o gato-noivo, duque da casa grande, que logo se apaixonou por ela e fugiram os dois num meteoro aranhoso para o país das maravilhas.

 

Na verdade ninguém ficou chocado com a redação das manas Antónia e Bernardete. Olharam uns para os outros seguindo o princípio de quem decreta o decreto por decretar, e o reverendo achou mesmo que os argumentos da redação, podiam sustentar-se numa insanidade desafiante, numa congruência nonsense, ou numa profunda aptidão para a inaptidão, afirmando estes reparos todos com sorrisos complacentes.

 

Ao que a mãe das meninas acrescentou de imediato:

 

Talvez até se tratasse de algo absolutamente nacional, ou, de um nonsense inclinado para a realidade. E lá que era pedagógico (o que ainda é pior) era, sim senhora. Ah! Que curioso, disse, é absolutamente nova a forma como as minhas filhas veem a realidade. Nos dias que correm, a este nível é raro. Ah é, é! São deveres morais escutarmos a voz da razão: não acha Sr., padre?

 

E enfim, sabe-se que a hilaridade que terá nascido naquela tarde de verão foi tema lato e que sem esta obra de redação, o nonsense nunca teria chegado a parte constituinte, ao menos na ilha.

 

Teresa Bracinha Vieira