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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

 

Era um dia de abril. Lúcia abrira a porta do quarto que ligava à varanda e esta ao mar, aos pássaros, aos barcos, às flores, à romântica mesa onde estivera a ler no dia anterior o livro “Engenho”.

 

A sua varanda parecera-lhe sempre uma galeria de arte fosse qual fosse a estação. No entanto, ao aproximar-se a primavera atribuía-lhe sempre o nome de “Alegoria”. Presumia-lhe uma infalibilidade de linhagem romântica e nela a existência de um halo perfeito a todos os estados de espírito e pensamentos. Sorria Lúcia para este seu entendimento de que o acordar em paz junto desta “Alegoria” não envolvia a imitação de uma arte por outra, nem sequer o engenho no pincel dos olhos da interpretação.

 

Deixara cair o envolvente xaile de seda e preparava-se languidamente, mas afoita, para recordar o que lera no livro no dia anterior. E de lá lhe chegava o tal homem que tendo o engenho de se aproximar da verdade, recusava o enredado dilema que lhe propusessem acerca da razão, da paixão, da fé e do livre-arbítrio. Achava, que a linguagem desse homem era como a das ondas na areia: derramava coisas artísticas e claras e coisas que provocavam uma espécie de caçada científica atras da onda quando esta se recolhia de novo ao mar. Depois, pegava numa das flores que Mercedes - sua empregada- deixava todos os dias num cesto junto à mesa, e de si para si.

 

A linguagem escrita não é instrumento de confiança como é a visão de fotografia que tenho desta varanda. A linguagem escrita é até judiciosa, é uma coisa sempre perigosa, sempre poética como a música ou o fogo. A linguagem é o engenho? O que daqui vejo é uma verdade através dos cheiros, das formas, das cores, verdadeira sequência de sinais estéticos que são lições de segurança na vida e nela, de prioridades. Ainda assim, nesta “Alegoria” sinto-me como se viajasse em primeira classe num comboio de luxo para conhecer a India. E o homem que tendo o engenho de se aproximar da verdade vivia próximo dos símbolos da realidade e não se equivocava a respeito.

 

Lúcia pegou no livro de novo, e sentiu uma curiosidade enorme em saber, espreitando para o céu, se viria aí tempestade e com ela o interrompido sabor de tudo o que luz num oiro de pressuposto em tudo cuidado, ou, afinal, num oiro de Cabo Horn. Oceanos e poderosos Andes que se dissolvem em ilhas poderiam ser vistos da sua varanda em alegoria viva na tarde desse dia.

 

Teresa Bracinha Vieira