CRÓNICA DA CULTURA
E discutia-se se a alma deveria ter acesso a cuidados paliativos ou a alguma competência específica que lhe acudisse na dor. Falava-se em várias especializações da medicina contemporânea que podiam abordar a temática, mas sobrepunha-se a objetividade, agora tolerante, que, levava a que a alma fosse vista como uma espécie de fatalidade que em nós vive, e, que a dor física enquanto fenómeno universal se não podia reconduzir a fatalidades, nem que se deitasse mão a teologias ou a filosofias. De resto, houve mesmo quem dissesse que então, a existência da alma era um mal em nós, já que atormentava a todos, e que afinal, era ela bicho-homem em dor de invencível natureza.
Olhando a todos, disse baixinho
Mas a alma chora de dor e é muito difícil não lhe acudir pois ela mostra-nos, como ninguém, no amor.
Alguém acrescentou
Sempre podemos fazer-lhe uma cura de sono para as dores mais insuportáveis, ou até para quem a não queira deixar partir em fase terminal, poderemos sempre anestesiá-la ou induzir-lhe um coma. É uma tranquilidade para todos. A medicina até pode criar sub alternativas dentro deste saber. Mas atenção! o sofrimento moral e físico, unidos, são uma falta de compaixão da alma, por abandono dela, da pessoa amada. A dor da alma, em pensamento – já ouvi dizer - tem uma figura estranha e difusa, de tal modo que as biopsias não lhe encontram o certeiro lugar para se efetuarem e delas sair diagnóstico.
Não concordo, disse eu
Desculpem, nada sei de medicina, teologia ou filosofia, mas a alma quando chora expõe lugar e respirar e pode ser detetada pelo estetoscópio dos olhos. A alma quando se contém em dor é insónia em destroçado ponto de interrogação. A alma dá sintomas quando feliz ou doente. Sente-se nela um pulso irregular quanto baste à interpretação. E que se não sugira ver a alma através das ressonâncias magnéticas e assim averiguar local ou posto dentro do corpo, pois ela tem poderes para escapar ao contraste que existe para se efetuarem estes exames.
Então e como se faz, na sua douta opinião, perguntaram-me em desafio
Pois não sei. Nem sei qual a terminologia que exprime as dores da alma. É muito difícil de dizer, mas sei que ela pode morrer. Por exemplo, morrer de amor, mas não só, morrer de abandono o que é terrível. E não acham que deveríamos ter antecipado a atenuação da sua dor enquanto ela insistentemente se queixava? E quando a alma se ri? qual o aparelho que sugerem para registar o estado da felicidade para que de futuro se use como paliativo, se necessário? Qual a análise ou exame de ADN que é avaliado na doçura de um sentimento vital da alma? Acho e só acho, que, a dor da alma há-se ser algo que fica cativa num órgão, e esse órgão é o cérebro que requer o que o coração bombeia. Quando lá está, enquanto dor, há-se ocupar um espaço anteriormente vazio - pois enquanto felicidade ela é ar. Então, se se procurasse esse espaço e ele estivesse cheio, era como encontrar o local e formato da dor, e decifrar a partir daí, a partir de uma infinidade de pontos, o fio do seu discorrer. Pelo menos surgiria o início de um horizonte de inteligibilidade. Não? Mas não procurem circunvoluções: a alma não tem, é diferente. Acho que é algo sensorial, algo que sentimos viver, padecer e morrer e ainda que pertença ao corpo tende a identificar-se com uma essência que lhe atribui ou retira a vontade de viver. A alma é uma força que se rende ou não ao conhecimento dos limites.
Não cabe à medicina, ouviu-se em coro. Ou cabe, no que a psicologia e a psiquiatria propõem. E noutro apontamento
Deus dirá, um dia. E continuaram uns
E a literatura e as artes em geral não lhe são irresistíveis em tratamento adequado? Como quem conta uma história em doses de prescrição certeiras?
E outros
Nem se lhe imputa culpa por não caber à medicina o seu tratamento. Só a felicidade é salutar ao corpo: a dor retira-lhe a energia. Isso sabe-se. Resta saber se verdadeiramente a alma viver no cérebro, é ela assim mais útil ao homem do que se viver no lugar do não se sabe
Ainda somei
E desse lugar, deitar ela mão a uma mãe que a console com atos e palavras, qual remédio sem prole, mas que vá confortando, como só reconforta, quem, em bondade, for a última testemunha da vida. Quanta expectativa!
Teresa Bracinha Vieira