Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

A RIBEIRA DA BALEIA tinha caminhos de condições muito precárias para lhe aceder. Tinha percursos estreitos com fortes subidas e descidas suspensas em fúrias de pedras que rolavam debaixo das ferraduras dos burros tão carregados que escorregavam e, ainda de vez em quando, lá levavam com um vergão para que se não temessem do que a memória já lhes devia ter retido de tantas idas e voltas à Ribeira da Baleia.

 

Por mim iria sempre à Ribeira da Baleia desde que a Ti Jaquina Pataca me convidasse a ir com ela a este local para mim, mágico. Também ia connosco o rebanho de ovelhas que nos seguiam os passos e que se confiavam a uma certa sonolência no descer das ravinas como se não olhar fosse atitude protectora ao não cair.

 

Chegadas à Ribeira hora e meia depois de sair da aldeia, as ovelhas corriam ao pasto, os burros eram descarregados e soltos, e lá se expunha a ribeira sempre envolta numa neblina de quem tenta fugir à luz expressa. A ti Jaquina começava a tratar da horta e a refrescá-la com a farta água da ribeira. A terra molhada deitava o cheiro que só a conjugação com o verão lhe era inigualável. Depois era a hora da sandes com chouriço. Sentávamo-nos as duas em pedras escolhidas à beira da água e como sempre a ti Joaquina perguntava-me

 

Então e hoje qual é a pergunta da menina?

 

A baleia foi atirada aqui pelo mar nas marés vivas?

 

Pois dizem que não. Ela veio vindo ao engano entrando na corrente em que a ribeira chega ao mar. A ribeira deve ter-se alargado naquela noite e o mar zás! empurrou-a para a livrar de por ali morrer encalhada. E ela veio vindo devagarinho, cansada e esvaída e aqui parou de vez junto à horta.

 

Que estranho como ela se perdeu assim terra dentro. A ti Jaquina viu-a?

 

Ah claro! era enorme, de boca aberta. Não se falava de outra coisa pelas terras. Todos diziam uma baleia deu à ribeira da ti Joaquina. E iam todos lá ver.

 

E espreitou-lhe a boca?

 

Ah claro! e o que eu vi…

 

Que viu?

 

Vi o princípio do seu mundo. Vi-lhe o coração.

 

O coração?

 

Sim menina. Quando se esteve entre vida e morte o coração tem certezas e vem dizê-las à boca de todos mesmo que se não ouça nada. Também acho que ela deitava um fumo que se confundia com a neblina e lá dentro dela era tudo negro, acho que do luto. Era uma baleia defunta e a podridão dela começava ali naquela água que fazia de cemitério.

 

Pois imagino, mas sem caixão que a baleia é bicho enorme. E diga-me novamente, e depois como foi?

 

Depois vim cá passados uns dias e nada havia na ribeira. Pus-me a pensar. Quem levou a baleia e como? se era tão grande e estava morta? Perguntei ali ao vizinho da horta e ele respondeu-me grosseiro que de nada sabia e continuou a cavar como se a pergunta fosse parva de tão tonta.

 

Não gosto de coisas segredosas das quais nada resta e ao mesmo tempo parecem mistérios mentirosos.

 

Sim, mas ainda há o coração.

 

Qual coração? O da baleia?

 

Sim. A menina não sabe, mas acordar não é de dentro, acordar é ter saída mesmo nem que seja para um fiapo de vida ou morte. Tenho esta coisa comigo e fui lá dentro da boca buscar o coração da baleia. Dei-lhe campa, é no lugar das alfaces e dos cheiros que se veem, ali mesmo ao fundo. Só eu sei que está lá o coração que se enganou no caminho. E as pessoas julgam que de cima dos telhados vêm tudo…

 

Ah já sei, como lhe salvou o coração ela deve ter voltado ao mar num forte impulso de corpo e aproveitando o redondo da forma, depois, no mar, os peixes comeram-na sem que soubessem que não comeram nunca o principal.

 

Pode ser assim ti Jaquina?

 

Pode menina.

 

Teresa Bracinha Vieira

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.