CRÓNICA DA CULTURA
PEDAÇOS I
Parece-lhe que foi criança há já demasiado.
Também lhe parece que nunca foi criança.
Era-se de um tempo em que os valores se liam no olhar dos outros sobre nós.
O direito de fazer perguntas só pertencia a quem o soubesse e devia entender-se como um privilégio estarmos obrigados a todas as regras.
A máscara? o primeiro critério.
A lembrança que lhe ocorre das guerras familiares, não é muito diferente deste vírus que por aí anda a meter foice, até nas noites natalícias quando o ciclo do sofrer silencioso era oposto ao brilho do molho das rabanadas.
Também por entre as toalhas de linho cru, bordadas pelas avós, chegava assintomática, a realidade do crivo – gato ágil - das bainhas abertas na alma.
Os filmes de final de domingo pouco serenavam o medo daqueles que, em casa, ou fora dela, tinham o mando do porque sim. A esses, obedecia-se ante o mínimo no ar.
Era então o transístor encostado ao ouvido que dava a sensação de fôlego; de dispor do mundo junto às arestas; de tocar naqueles sonhos que nunca podem ser desunidos.
Só assim, quando as notícias dos que não tinham aguentado a força do novo vírus nos chegavam, apenas as cartas de Goethe nos explicavam que cada estádio não era um só estádio.
Mesmo sem metamorfoses, o real mudava.
No dia seguinte, no amanhã, logo ao princípio, seria tempo de praia, tempo daquela luz que embebeda porque a luz se embebe no mar.
Teresa Bracinha Vieira