CRÓNICA DA CULTURA: A PRISÃO DA VIDA POR INTEIRO
O neto da D. Amélia - modista exemplar e orgulhosa de tanta sabedoria na feitura de qualquer modelo que lhe requeresse cuidados especiais – abriu-me a porta e balbuciou qualquer coisa. Entrei e esperei no hall onde uma perna artificial estava dependurada num cabide e agarrada a um sapato preto, parte integrante da perna, e sobre ele uma serie de panos e um punho de lã de alfinetes.
Soubera que a minha muito querida modista tinha tido a desgraça de aprender a dor da amputação de uma perna, devido a tremendos problemas de artrite reumatoide. Levava-lhe naquele dia, musseline para uma blusa e um ramo de flores escolhidas ao dedo por mim.
Mal chegou ao hall, rápida, na sua cadeira de rodas, depositei-lhe as flores no regaço e debruçada, dei-lhe o mais ternurento abraço que pude. Um abraço de 28 anos de modista e cliente amigas.
A D. Amélia retirou logo um lenço do bolso para enxugar a lágrima, apertou as flores contra o peito e disse-me com um largo sorriso
Ora vamos lá!, que saudades!
Pegou na perna pelo pé que estava dependurada no cabide e lá fomos as três para a saleta das provas.
Perguntei-lhe
Mas não usa a perna, D. Amélia?
Ó menina! Claro que não, até me faz feridas este trambolho. Sabe?, o hospital deu-ma e nem sabe que número calço e como vê este sapato é enorme. Depois o sapato tem ar de sapato de freira a fingir atacadores e tudo, e a perna, tem a cor de ter ido à praia verão e inverno. Olhe um mamarracho destes a que tive direito por tudo o que sofri!, e como prefiro andar nesta cadeirita de rodas, não quero usar a perna, mas faz-me um jeitão. Ao cabide não lhe chego:logo, ponho lá a perna pendurada por esta argola que o meu neto lhe arranjou, e, nela coloco os lenços ou alguns trapos de recorte a que chego facilmente. Quando vou às provas, levo-a comigo, e, além de ser fonte de riso meu e das clientes, coloco-lhe em cima os fatos a provar: uma utilidade pura! Um buracão também, que, às vezes, tenho de virar ao contrário se da zona da coxa da tola, cai algo lá para dentro. É oca como tudo o que é tolo!
Amélia, não tem dores? Quis já começar a trabalhar? Não é cedo? Não poderei eu pedir outra perna para si?
Não, não se incomode. Já pedi eu e deram-me outra igual. Tinha duas e só me amputaram uma. Era uma cegada quem as via ali dependuradas…«ah!, afinal tirou as duas perninhas?» e eu que nunca fui de ter mais do que aquilo a que tenho direito. Veja bem que até um dia até me assustei: olhei para as duas pernas dependuradas e de repente olhei para mim. Não sei como foi isto, mas parece que me assustei pois sabia que só me faltava uma, mas tudo é possível. Então mandei o meu neto entregar uma delas ao Sr. Dr. lá do hospital, e veja que ele perguntou de jeito bruto
Para que é que eu quero isto?
E o meu neto, que se não fica, respondeu-lhe
Mas para a minha avó já serve não é? E veio-se embora.
E ria-se a bom rir, olhando por cima dos óculos como quem pergunta: percebes?
Bem! D. Amélia essa recuperação vai correr bem.
Ah! Pois vai, não sei se lhe disse, mas o estafermo do meu ex-marido que chegou a advogado à conta dos meus alfinetes e da minha coluna, ele morreu. Viu? Estava bem e morreu. Estava com a amante e morreu. E eu ainda cá estou! Foi a vida do Dr. Ai que linda musselina me traz. Que vamos fazer?
Olhe D, Amélia – menti – ainda não sei. Tem alguma sugestão?
Claro que sim. Não é o seu marido muito ciumento?
Sim.
Então vou fazer-lhe o que a musselina der, mas vai andar vestida unicamente com a macieza nua dela. Ou seja, vai andar linda como sempre a vi, todavia despida sim, de uma forma mais completa. Desde que me cortaram a perna ou desde que parei de chorar, mudei a minha criação nas roupas. Acho que o corpo, quando se veste, muitas das vezes perde a definição e assume uma pele que a roupa lhe empresta. No fundo, é melhor que tudo acabe confundido.
Perna no cabide ou sem perna na cadeira, tudo carrega presenças, até o que é volume vazio. E nós andamos aqui a enfeitar a epiderme que tantas memórias criam ao corpo e um dia abalroam-nos. Olhe menina, é o que mais sinto que me fizeram. Abalroaram-me e deixaram-me com uma parte de mim e uma crosta a segurar o resto. É uma espécie de uma guerra, mas constante.
Enfim, não preciso de medidas, já vi que são quase as mesmas: fronteiras que conheço há tantos anos.
E como está o paizinho? Doentinho não é? Chatinho, não é? Ai desculpe, mas ontem vi um filme em que a filha punha o pai no alpendre à hora do trem e um dia ambos viram o tempo e começaram a dar-se melhor.
Teresa Bracinha Vieira