CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ
Baía de Ana Chaves, S. Tomé © Centro Nacional de Cultura
3. ENTRE MEMÓRIAS DO PASSADO E O PRESENTE (I)
1. A primeira paragem do dia foi no extremo sul da baía de Ana Chaves, na cidade de São Tomé, onde fica o forte de São Sebastião, erguido pelos portugueses, em 1575, diante do qual, no seu perímetro exterior, ao ar livre, estão as estátuas monumentais dos navegadores lusos João de Santarém e Pêro Escobar e do povoador João de Paiva. Retiradas de praças e jardins, após a independência, não foram, até agora, destruídas nem vandalizadas, sendo preservadas como património e memória histórica (o que é de louvar), como que parte ou a continuação do Museu Nacional de São Tomé e Príncipe, instalado no interior da fortaleza.
A alva representação monumental dos homenageados, reforçada pelo obelisco que os acompanha, sinaliza-se à distância, contrastando com a discrição do tributo aí prestado ao líder anticolonial santomense Amador.
O espólio do museu faz a retrospetiva possível da história e cultura que evoca, através de documentos artísticos e históricos, fotografias, esculturas, pinturas, recolha de objetos e reconstituição da vida diária nas plantações de cacau e café, departamentos públicos, residências estatais e eclesiásticas, desde a época colonial à atual, exemplificando-o a vida nas roças e o texto do hino nacional, subscrito por Alda Espírito Santo. De destacar também a capela do santo padroeiro, baluartes, farol, terraços e vista para o ilhéu das cabras.
2. A CACAU (Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias) é um caso pioneiro no panorama cultural de São Tomé, como o é João Carlos Silva a inovar e a caminhar por caminhos nunca antes caminhados. Seja na inovação e reinvenção da cozinha tradicional e de autor na roça de São João, na Fábrica das Artes e Cidadania Ativa (FACA), no autocarro Tata, uma biblioteca móvel levando livros e cultura a toda a ilha (como outrora a da Gulbenkian), sem esquecer a CACAU, o seu mentor mostra-nos que há algo de belo em ter uma missão, haja querer e perseverança para o tentar realizar.
Na CACAU há um museu, galeria de exposições, auditório, palco de espetáculos e eventos, espaço de dança, livraria, bar, restaurante, produção e venda de artesanato, tendo como objetivo principal promover a arte e a cultura. É também um centro polivalente de vocação aberta e transversal no que toca à educação, formação artística, empreendedorismo, aprendizagem, informação e animação turística, incluindo mostras permanentes e temporárias de pinturas e tradições culturais, com uma detalhada retrospetiva histórica, económica, social e cultural do país, dos primórdios à atualidade, não esquecendo o tchiloli, que persiste.
Se a arte é essencial para construir cidadania, também é possível transformar São Tomé e Príncipe num entreposto cultural, com novos voos, parcerias bilaterais ou multilaterais e com o beneplácito do Estado local e de pessoas visionárias como João Carlos Silva.
3. Se as roças foram o ordenador territorial do país e ainda são um polo central do seu desenvolvimento, ir a São Tomé sem ter uma noção da sua importância no passado, no presente e das suas potencialidades futuras é indesculpável.
Após uma breve paragem na roça da Bela Vista, onde a casa principal é o edifício mais interessante do conjunto construído (seguido do hospital), e de uma visita à aprazível e discreta cascata Rio de Ouro, paramos na roça Agostinho Neto (antigamente chamada Rio de Ouro).
É a maior e a mais emblemática pela sua dimensão e imponência arquitetónica em São Tomé e Príncipe, apesar do abandono e degradação a que está votada, organizando-se através de uma larga, longa e pavimentada avenida central, dominada pelo impactante hospital (de influência déco), na extremidade mais elevada, e ladeada pelo conjunto das sanzalas com terreiros privados, das casas dos feitores, encarregados, trabalhadores e pessoal dos escritórios, hoje ocupadas e habitadas por população local.
É desolador constatar o desleixo e deterioração a que chegou um hospital que outrora funcionou com duas grandes alas, masculina e feminina, para doentes, consultório médico, enfermarias e farmácia, tendo ao lado uma capela.
No extremo oposto ao hospital, ficava a casa do proprietário, antiga casa principal, substituída agora por um pavilhão de festas, museu ou algo similar. No espaço onde houve um jardim botânico, zoológico e um pavilhão de chá, há flora e vegetação à solta, onde sobressai uma planta conhecida por “não me toques”, a qual se fecha e dorme quando é tocada. Dizem os locais fazer lembrar a antiga proibição aos santomenses de tocarem nas mulheres portuguesas.
Dentro das três grandes tipologias das roças, correspondia ao modelo da roça-avenida, mais complexa e organizada, em redor da espinha-dorsal constituída por uma alameda, situando-se nela, em tempos, o mais avançado sistema ferroviário do arquipélago, fazendo a ligação com o porto em Fernão Dias.
Era uma espécie de joia da coroa das roças de São Tomé. Foi na Rio do Ouro que pernoitou, em 1907, o Príncipe Luís Filipe, filho do rei D. Carlos, aquando da sua visita à colónia.
Mesmo desaproveitada e exposta ao descuido, é uma permanente atração turística, organizada de modo a condicionar uma visita guiada, com a obrigação de deixar um contributo para ajuda da comunidade, que nos recebe bem.
E se é verdade que se as roças não estivessem localizadas em zonas interiores e remotas de São Tomé, o país não se teria desenvolvido tanto do ponto de vista viário, ferroviário e portuário, o mesmo releva, agora, em termos turísticos.
4. Seguimos para a Lagoa Azul, antecipando uma paragem no topo da estrada, observando as águas azul-turquesa de um dos melhores locais de mergulho da ilha, com uma grande variedade de corais, a haver boa visibilidade.
Junto à lagoa, somos abordados por jovens santomenses que expõem, para venda, artesanato local, que assim passam os dias, segundo apurei.
Havia que satisfazer um pedido, de alguém muito especial e em trabalho de voluntariado: saber da situação do embondeiro, por ela eleito como seu, o qual, neste entretanto, desapareceu por arrastamento para a água, por destapamento das raízes com a erosão da terra onde assentava. Era de grande porte, segundo testemunho do guia, confirmado por quem o escolheu. Afinal, a lagoa, na sua idílica beleza de águas azul-turquesa ou verde-esmeralda, consoante a disposição da luz, também tem os seus caprichos.
Almoço no Mucumbli, num refúgio que é um hino à natureza, como que a compensar o dissabor que acabáramos de ter.
18.10.24
Joaquim M. M. Patrício