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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

  

 © Facebook da Biblioteca Nacional STP 


8. CAMINHAR A PÉ PELA CAPITAL DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE


Há que ter duas pernas saudáveis para caminhar. Ao fazê-lo laboramos com a mente, humanizamo-nos interagindo com a paisagem, o espaço e o tempo que respiramos, em tranquilidade e sem demoras. Caminhar não é um desporto, em que o andar depressa, em muito pouco tempo, apressa tudo. Pode ser uma fuga, um exercício espiritual, uma satisfação física, mental, uma inspiração para sairmos de casa com o muito para nos oferecer e revelar sobre aquilo que somos. 

Foi o que me guiou ao percorrer a pé o espaço urbano da cidade capital de São Tomé e Príncipe (STP), conhecida por São Tomé ou Cidade de São Tomé.   

Após uma breve caminhada, a primeira paragem foi na Biblioteca Nacional Francisco José Tenreiro (poeta e geógrafo), inaugurada em 1 de maio de 2002, oferta da República da China (Taiwan), em cujo exterior se lê: “Que a leitura seja a maior luz do mundo e que os homens a encontrarem-se, sejam como luzes que se juntam” (Jerónimo Salvaterra, in A Ilha do Amanhã). Pelo que vi, o espaço interior, não acanhado e espaçoso, está subaproveitado, quer em livros ou novas tecnologias, apesar de apelos a doações. Aí decorria uma conferência, reunião ou apresentação restrita. Destaque, nas paredes, para um processo de institucionalização da memória associado a figuras públicas da cultura santomense, o que ajuda a consolidar uma lembrança específica da nação. Alda Espírito Santo, que além do exercício de cargos governamentais e da sua vasta obra literária, integrou movimentos emancipalistas, sendo dela a letra do hino das ilhas. Alda Neves da Graça Espírito Santo, que incorporou movimentos emancipalistas que levaram à independência de antigas colónias portuguesas, entre eles o MLSTP, que conduziu à emancipação de STP. Maria Manuela Margarido (casada com Alfredo Margarido), um nome cimeiro da poesia de STP, que abraçou a causa anti-colonialista e levantou a voz contra o massacre de Batepá, em 1953. Francisco José Tenreiro, ensaísta e poeta da negritude, assumiu-se como pan-africanista, “sem, no entanto, renegar outros valores adquiridos na cultura europeia”. Caetano da Costa Alegre, poeta, que viveu no século XIX e a quem Manuel Ferreira chamou “criador da negritude em poesia”, exemplificando-o em versos: Ah! Pátria mulher, olha, a noite é negra e tem milhões de estrelas/o dia é belo e branco e tem apenas uma”.         

Seguiu-se o Arquivo Histórico de STP, criado na época colonial, com documentos e exposições alusivos ao início da colonização das ilhas, população e ciclos económicos, preservação da memória e identidade nacional, património arquitetónico, afirmação cultural, escravos contratados, fundos e administração colonial, por entre livros vendáveis, alguns fundamentais para a compreensão do país.     

O cineteatro Marcelo da Veiga (poeta), antigo cinema Império na era colonial, é um edifício digno, modernista e de escala monumental para a área onde se localiza. Construído na década 50-60 do século passado e recuperado, com um donativo de Taiwan, no início deste milénio, necessita de obras urgentes de conservação e manutenção, aí funcionando, à data, escritórios de advogados e a única livraria de ST (a exígua livraria Nón), pelo que apurei. Nos tempos áureos tinha mil lugares, aí tendo atuado, em 1954, “o grande e inimitável artista João Villaret”. Aí tocou, em 1965, Sequeira da Costa, segundo placa alusiva, aluno de Vianna da Mota, este nascido em São Tomé. Custa, uma vez mais, ver o abandono e degradação de um espaço que tem todas as condições para se reabilitar na dignidade que merece.   

No exterior, no centro da Praça da Cultura, a estátua do Rei Amador (em homenagem aos heróis da liberdade), que em 1595 chefiou uma das mais importantes revoltas de escravos, acabando por ser preso e morto, hoje herói nacional.         

As redes viárias e passeios apresentam-se muito desgastadas e danificadas, incluindo buracos, o que é uma constante por toda a cidade, o que foi atenuado, à data, segundo relatos, pela realização de uma cimeira da CPLP.   

No centro da cidade, numa das ruas mais movimentadas, visitei o Instituto Camões e Centro Cultural Português, nomeadamente a sala de leitura Almada Negreiros, de conferências e de formação, com mesas e cadeiras repletas de jovens, ávidos de internet e ar condicionado, cujo acesso aí dispunham para estudo, investigação e lazer (uma agulha no palheiro ver alguém folhear, consultar ou ler um livro). Há obrigações que devemos manter e preservar, reforçando-as, não valendo apenas o imediato, mas essencialmente o longo prazo. O Brasil está representado através do Instituto Guimarães Rosa, num edifício pintado com as cores nacionais.     

O núcleo mais central, concentrado, de maior circulação e de arquitetura colonial, tem de tudo um pouco, num emaranhado de ruas que se cruzam umas nas outras, pouco cuidadas e necessitando de arranjos e obras. Insegura, degradada e em ruínas, estava a linda marginal, a pedir, como pão para a boca, uma reabilitação e requalificação célere. Por entre ruas, ruelas, praças, largos, estradas, passeios e habitações, há muito a fazer, recuperar, reabilitar e requalificar, numa urbe com enorme potencial.

Há surpresas, a maior das quais foi, para mim, o estado imaculado e respeitável do Monumento aos Descobrimentos, limpo, exemplarmente pintado, preservado, não destruído ou vandalizado, não ignorando a História, descolonizando-a sem complexos, numa súmula do que teve (e tem) de positivo e negativo. Bem perto, o palácio do Povo (presidência da República) e a Igreja da Sé, da era colonial, bem preservados.   

Destaco ainda a embaixada de Portugal (muito bem localizada), o liceu nacional e o forte de São Sebastião, o bairro 3 de fevereiro, zona residencial de moradias unifamiliares (antigo bairro Salazar), a Praça da Independência, instalações do Instituto Marquês de Valle Flôr. Sem esquecer, na avenida Marginal, a casa Claudio Corallo e a loja/salão de chá e café Diogo Vaz, duas representantes do melhor chocolate que há a nível mundial.     

Come-se bem em ST, onde o défice de carne é compensado por muito bom peixe e frutas típicas. Há boa escolha de restaurantes pela capital (Papa Figo, Pirata, Filomar, Cacau). Diz-se que “quem morre com fome é preguiçoso”: basta sair da cidade e a natureza abunda em exuberância. Registei a ausência de qualquer queixa do meu organismo ao que aí comi. O que foi uma agradável e estimulante surpresa.


22.11.24
Joaquim M. M. Patrício

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