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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS LUSO-TROPICAIS

 

6. GILBERTO FREYRE E O LUSO-TROPICALISMO
CRÍTICAS E MÉRITOS (III)

 

Torna-se necessário expor alguns argumentos em defesa de Freyre.

 

É de sublinhar, em primeiro lugar, o seu contributo fundamental para a reabilitação dos “trópicos”.   

 

Durante décadas foi uma expressão equiparada pelos europeus a exotismo, algo de estranho, uma realidade que era tida como alheia à denominada “civilização ocidental”, transportando consigo conotações negativas. 

 

Também o termo “tropical” nos aparece como sinónimo de exótico, abrasador, diferente e marginal, fora do que é usual e comum, associado negativamente a estigmas de doenças tropicais, a primitivismo, a decadência, a barbárie, a selvajaria, ao degredo, ao anti-desenvolvimento, à negação da saúde, da agricultura, do comércio, da indústria, da civilização, porque anti-civilização. 

 

Esta leitura está bem patente no livro “Tristes Trópicos”, do francês Claude Lévi-Strauss, com a particularidade de fazer uma descrição do Brasil. 

 

Como é enfatizado pelo próprio título da obra, os trópicos são tristes, sendo sugestivo o seu início, onde se lê:

 

“Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as minhas expedições. Mas quanto tempo para me decidir! Quinze anos passaram desde a data em que deixei o Brasil pela última vez e, durante todos estes anos, muitas vezes acalentei o projeto de começar este livro; a cada vez, era detido por uma espécie de vergonha e de repulsa, pois será mesmo necessário contar minuciosamente tantos pormenores insípidos, tantos acontecimentos insignificantes?” (edições 70, p. 11).   

 

E acrescenta, prosseguindo:  

 

“É possível, (…), consagrar seis meses de viagens, privações e lassidão fastidiosa para se recolher (…) um mito inédito, uma regra de casamento nova, uma lista completa de nomes clânicos, mas esta escória da memória: “às 5 e 30 da manhã entrávamos na doca de Recife em meio ao grasnar das gaivotas e uma frota de mercadores de frutas exóticas que enxameava ao longo do casco”, essa recordação tão débil, merece que eu erga a minha pena para fixá-la?.   

 

E, no entanto, esse género de narrativa goza de uma aceitação que para mim continua inexplicável” (idem, p. 11/2).    

 

Trata-se de uma careta de escárnio, de um ponto de vista carregado de tédio e enfado, num tom desinteressante, entediante, angustiante e penoso, emitido por um francês oriundo de um centro da civilização, a França, com a missão de “civilizar” a periferia dos trópicos e as suas populações, tristemente depreciadas, baseando-se Lévi-Strauss na noção de alteridade. 

 

Sendo “Tristes Trópicos”, de 1955, um livro de viagens, não deixa de ser curioso que Freyre, em 1953, tenha publicado “Aventura e Rotina”, de igual modo uma obra de viagens.

 

Para Gilberto Freyre, ao contrário de Strauss, os trópicos não são tristes e enfadonhos,  nem periferias marginais, antes sim o lugar por excelência onde floresce uma civilização original, mais humana e universalista em muitos aspetos, com especial incidência nos espaços marcados por aqueles que em seu entender são portadores do verdadeiro destino tropicalista, os portugueses. Eis os trópicos e a civilização lusa condensados no luso-tropicalismo. 

 

À alteridade de Lévi-Strauss, contrapõe Freyre uma proclamação pública de similitude, procurando anular e superar distâncias e antagonismos, elogiando e defendendo a possibilidade de ultrapassar esse dualismo e oposição do Outro. 

 

Freyre, fala-nos numa língua não dominante e do hemisfério sul, tido como não hegemónico; Lévi-Strauss, fala-nos numa língua tida então como hegemónica e partindo do hemisfério norte, tido como dominante.     

 

Isso não o impede de defender que o mundo tropical não é um mundo “antiquado”, “arcaico”, “enfadonho”, “entediante”, “desinteressante” e “exótico”, face a um tido como “desenvolvido” e “normal”.     

 

Que não é um mundo “estático e parado” face a um outro “dinâmico e em movimento”. Tropicalismo não é equivalente a primitivismo.   

 

Eis um inquestionável contributo de Gilberto Freyre, diferenciando os “trópicos” pela positiva, sem complexos.        

 

22.11.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício