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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


116. MUNDIVISÕES EUROPEIAS E RUSSAS


Qualquer Estado pelo mero facto de ser maior territorialmente, mais forte, ter uma mentalidade imperial e reclamar zonas de influência, não tem o direito de agredir outro, violando o Direito Internacional.    


Após a invasão, indicia-se poder desaparecer a função de estado tampão da Ucrânia para a Rússia. O país agredido quer ficar do lado europeu ocidental. O país agressor quer que fique do lado russo.


Quando há choques geopolíticos importantes, a Europa reage. Com o fim da segunda guerra mundial e o começo da guerra fria, reagiu com a integração europeia e a criação de dois blocos, um a oeste (ocidental) e outro a leste (comunista). Com o fim da guerra fria, reagiu com o alargamento a leste, através da União Europeia e da Nato. E reagiu, agora, com a aplicação de sanções ao invasor e a promessa de adesão da Ucrânia à União Europeia, bem como com ajuda humanitária e militar (esta última maioritariamente dependente dos Estados Unidos), juntamente com aliados de outros continentes: Canadá, Singapura, Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Austrália e Nova Zelândia.


Em qualquer caso, a Rússia sempre foi um país com raízes europeias, em termos de cultura e mentalidade, apesar de ser um país euroasiático do ponto de vista geográfico.


Mas o desejo de ter nas relações internacionais um papel digno da sua dimensão territorial e poderio militar, em conjugação com a convicção de ter uma cultura específica suscetível de se universalizar, uma especificidade, excecionalidade e universalidade russa, faz com que tenha uma mentalidade imperial, que tem por justificada em termos históricos e culturalmente.   


Vejamos, numa sucinta síntese, as correntes fundamentais do pensamento filosófico e político russo, incluindo as tidas como subjacentes à atual invasão da Ucrânia.


Desde início do século XIX o pensamento russo divide-se em dois movimentos marcantes e opostos: o ocidentalismo e os eslavofilismo, englobando este os pan-eslavistas e os nacionalistas russos.


Para os ocidentalistas a Rússia, desde Pedro, O Grande, tem a vocação de ser parte integrante da Europa e a obrigação de recuperar o atraso que a distancia do  eurocentrismo ocidental, o que implica o abandono da arbitrariedade imperial, da limitação ou proibição das liberdades e direitos fundamentais, da identidade ortodoxa da igreja russa e do nacionalismo, tendo como representantes Piotr Chaadaev, Aleksandr Herzen e Vissarion Belinski.       


Os eslavófilos consideram a cultura europeia-ocidental decadente, fonte de declínio espiritual e moral, promovendo como ideal um arquétipo nacional que reúne as virtudes de um povo russo essencialmente agrícola, bom, gentil e pacífico, baseado numa visão religiosa do mundo apoiada na fé ortodoxa e na verdade da “via russa”, encontrando em si forças para a modernização, tornando-se um exemplo de referência para o Ocidente. São eslavófilos Alexis Khomiakov, Konstantin Aksakov, Ivan Kireievski, Ivan Aksakov, Mikhail Katkov, Iuri Samarin e Fiodor Dostoiévski.     


Esta visão orgânica, doméstica, idealista e romântica dos primeiros eslavófilos promovia o apoliticismo, em que o czar era tido mais como um pai, que uma autoridade formal. Daí que, entre outros, Khomiakov visse a missão do povo russo na vida suprema do espírito, e não na vida política, impossibilitando associar esta visão inicial a uma política estatal e imperial.


O dualismo entre ocidentalistas e eslavófilos estruturou para sempre o espaço intelectual russo, evoluindo, adaptando-se e reinventando-se, inclusive nas elites culturais e políticas da União Soviética, onde a nível intelectual teve, entre os dissidentes, um Sakharov ocidentalista, em oposição ao eslavófilo Soljenítsin.     


À filosofia especulativa e romântica dos primeiros eslavófilos, sucedeu um sistema filosófico mais positivista de filósofos e pensadores russos de segunda geração, nacionalistas e anti-ocidentalistas, tidos como inspiradores e mentores decisivos da atual política russa que subjaz à invasão da Ucrânia, a que aludiremos no próximo texto.

 

29.07.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício