Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


117. IMPERIALISMO, MESSIANISMO, EURASIANISMO, “NOVOROSSIA”


Para o filósofo russo Ivan Ilyin, anticomunista e defensor de uma “ditadura democrática”, a Rússia não é um “mecanismo artificialmente instalado”, mas sim um “organismo historicamente formado e culturalmente justificado”. É impossível amputá-la sem a ferir, fazer sofrer ou morrer. Faz uma exortação mística ao destino imperial russo, confiante de que chegará a hora em que a Rússia renascerá da desintegração e da humilhação, iniciando uma nova era de desenvolvimento e grandeza. Países e regiões que estavam sob o controlo natural da Rússia serão disputados e tomados por vizinhos imperialistas. Porquê? Porque o Ocidente não apoia nem compreende a originalidade russa. O objetivo é desmembrar a Rússia, colocá-la sob o controlo ocidental, para a desfazer e, por fim, fazê-la desaparecer, levando-a a que se transforme numa permanente fonte de guerras. O Ocidente transporta o vírus anticristão, tem um plano de ódio e luxúria de poder, promove valores hipócritas como a “liberdade”. Refere os bascos, catalães, flamengos, valões, croatas, eslovacos, eslovenos e ucranianos como povos incapazes de se tornar estados e, por isso, devem ser controlados por estados vizinhos. Considera que a Ucrânia não existia como nação, era parte da grande Rússia, sendo um crime falar na sua separação.


Outro filósofo, Nikolai Daniliévski, teoriza que a Rússia tem um povo eleito por Deus para preservar a verdade religiosa do mundo, a sua grande missão justifica-se naturalmente, propondo uma união de todos os povos eslavos sob a liderança russa, dada a inviabilidade de o seu país vir a fazer parte da Europa. A inimizade desta com a Rússia é estrutural. Só a União Eslava pode estar à altura de uma Europa unida a ocidente, permitindo um novo equilíbrio mundial contra a vontade de um domínio ocidental. A Rússia é demasiado grande e diferente para se aliar ao Ocidente, sendo o seu tamanho o primeiro impedimento, não se podendo esperar que seja apenas uma, entre outras, das grandes potências europeias, dada a sua imensidão e poder. Nega a caraterística de universalidade ao Ocidente, acentuando a importância de uma dominação russa universal. 


Piotr Savitski, economista e geógrafo, fala na Eurásia, rebate a separação feita pelos Urais, defende um “terceiro continente” (a Eurásia), de coerência botânica, harmonia do relevo e clima, um território unificado, cujo centro é a Rússia.


Aleksandr Dugin, o mais famoso mentor do eurasianismo, bipolariza o globo em telurocracias (países da terra, do sangue e do povo) e talossocracias (países marítimos, do indivíduo e do racionalismo). A Rússia é uma telurocracia e os Estados Unidos e Europa Ocidental talossocracias. Eurosianismo versus Atlanticismo. A nação russa, definindo-se pela cultura e religião, não cabe nas fronteiras atuais, consubstanciando-se num império pela sua vocação civilizadora e messiânica. A fragmentação da União Soviética criou nações artificiais como a Bielorrússia, a Sérvia e a Ucrânia. Prevê um confronto com o Ocidente relacionado com a tentação de os Estados pós-soviéticos serem atraídos pela Europa ocidental e pelos EU, não podendo a Geórgia e a Ucrânia ser parte integrante do império atlantista. Refere ter começado a contagem decrescente impeditiva da anexação da Ucrânia pelo império americano, apoiando a possibilidade de se travarem conflitos bélicos pela Crimeia e leste ucraniano. Enfatiza que a política externa deve focar-se num inimigo comum, a destruir: os EU, o liberalismo e a democracia. Deve instigar-se o antiamericanismo, como bode expiatório, a todos os níveis. E estimular-se a dependência energética da Europa, implementando a Rússia apoio, compensações e recursos aos seus aliados.     


Para o ideólogo Alesandr Prokhanov a “via russa”, messiânica, imperial e belicista brotou no século XV com a teoria de Moscovo, a terceira Roma, destinada a substituir Constantinopla, emergindo agora um quinto império (após a Rússia de Kiev e Novgorod, de Moscóvia, dos Romanov e o soviético) que justifica anexações, havendo um messianismo russo que obedece à ideia de uma justiça divina, sendo a Rússia teocêntrica e o Ocidente antropocêntrico.  


Evocando uma unidade indestrutível e espiritual entre a Rússia e a Ucrânia, que a fuga desta para o Ocidente amputaria os russos de uma parte de si mesmos, surge o projeto da Novorossia (Nova Rússia). Prevê ligar a Rússia à Transnístria, região ocupada por pró-russos, na República Moldova, ocupando também o sul da Ucrânia, incluindo Mariupol, Mykolaiv, Kherson e Odessa, recuperar o Donbas (Lugansk e Donetsk), a leste, e Kharkiv, em nome da defesa de cidadãos russos, russófonos e da língua russa do “sudeste da Rússia”.  


O projeto ideologicamente mais ambicioso é o da União Eurasiática, “imitação” da UE, englobando a Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia, que tem como irrevogável a não junção da Ucrânia, e que se pode ampliar numa “Eurásia aberta de Lisboa a Vladivostoque”, nas recentes palavras de um ex-presidente russo.  


Sobressai uma Rússia ferida no seu orgulho, hipernacionalista e supremacista, que se diz humilhada, maltratada e ofendida, a querer reconquistar o poder que lhe foi subtraído, ampliando o seu estatuto imperial, numa lógica que apelida de correção da História. Tem o providencialismo como fundo permanente da personalidade e alma russa, transversal a outros povos, onde também emerge um quinto império, a fazer lembrar, entre nós, Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva.  


Mas em que há sempre um império que se tem por melhor que os outros, que quer convertê-los, dominando-os e subjugando-os, se necessário, pela força, a começar pelos mais próximos, os “irmãos mais novos”.  

 

05.08.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício