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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS


144. NÃO SOMOS A MEDIDA DE TODAS AS COISAS (I)


O início do Livro de Job, texto da Bíblia, diz que Job, da terra de Us, era um homem bom, rico, justo e temente a Deus, afastando-se do mal. Tinha sete filhos, três filhas, sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas e uma grande quantidade de escravos. As suas ordens eram cumpridas e as suas virtudes recompensadas. Um dia foi atingido pela desgraça e sujeito a provações. Os sabeus roubaram-lhe os bois e as jumentas, passando os servos a fio de espada. Os raios reduziram a cinzas as suas ovelhas e pastores. Os caldeus ficaram com os camelos. Um furacão, vindo do deserto, assolou a casa do seu filho primogénito, matando-o, e aos seus irmãos e irmãs. O corpo de Job cobriu-se de uma lepra maligna e, sentado e meditando entre ruínas, limpava as feridas e abandonou-se ao pranto. A mulher disse: “Persistes ainda na tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez!” Respondeu-lhe Job: “Falas como uma insensata. Se recebemos os bens da mão de Deus, não aceitaremos também os males?”. Os amigos tinham como resposta para tamanho sofrimento os seus pecados. Deus não poderia ter dado a morte aos seus descendentes sem que estes e o pai tivessem agido mal: “Deus não abandona o homem íntegro, nem dá a mão aos malvados”.

Job rejeitou estas alegações, que considerou de charlatães e fazedores de mentiras. Se nunca fora um homem mau, qual o porquê deste infortúnio?    

Após várias interpelações dirigidas a Deus, eis que: “Então, do seio da tempestade, o Senhor respondeu a Job e disse:  

Quem é esse que obscurece os meus desígnios com palavras insensatas?

Cinge os rins como um homem; pois vou interrogar-te e tu responder-me-ás.

Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra?

Diz-mo, se a tua inteligência dá para tanto. 

Sabes quem determinou as suas dimensões?  

Quem pôs diques ao mar, quando, impetuoso, saía do seu seio materno?...

Alguma vez, na tua vida, deste ordens à manhã e indicaste o seu lugar à aurora, para que ela alcançasse as extremidades da terra e expulsasse dela os malfeitores?  

De que lado habita a luz? Qual o lugar das trevas? …  

Qual a maneira como se divide o relâmpago e por onde se expande o vento leste pela terra? 

Quem abre o caminho aos aguaceiros e as rotas ao trovão? …  

Terá a chuva um pai?   

Quem gera as gotas do orvalho?

De que seio sai o gelo?  

Conheces as leis do céu? A tua ordem faz surgir os relâmpagos?

És tu que dás força ao cavalo? … É pela tua sabedoria que o falcão levanta voo? … Acaso é à tua ordem que a águia levanta voo? …    

Queres condenar-me para te justificares? Tens um braço forte como o braço de Deus?”.   

Trata-se de um pequeno excerto de um livro do Antigo Testamento, causa de várias interpretações, desde a censura ao implacável poder de Deus, passando pela ética da compaixão, até à aceitação da nossa pequenez perante o que é mais forte, incluindo a incapacidade de justificar e superar acontecimentos que escapam às leis atuais do conhecimento humano. Desafiando-nos e podendo provocar ira, ressentimento, fragilidade e resignação (qual Prometeu e Sísifo), há que o interpretar e compreender, o que tentaremos.


04.08.23
Joaquim M. M. Patrício