CRÓNICAS PLURICULTURAIS
145. NÃO SOMOS A MEDIDA DE TODAS AS COISAS (II)
O que é mais poderoso que o homem é tradicionalmente associado ao nome de Deus. Nesta perspetiva, sendo omnipotente e o criador de todas as coisas, e Job um homem bom, piedoso e justo, interrogamo-nos porque se manteve Deus mudo perante o seu sofrimento, exercendo sobre ele, que não fora mau, o seu poder implacável, apesar da sua fidelidade, aflição e humildade, acabando por lhe endereçar uma das mais pertinentes interpelações do Velho Testamento (ver texto anterior).
Enquanto as vozes e lamentos de Job não chegavam ao céu, sendo vítima de sucessivas provações que o levaram a amaldiçoar o dia em que nasceu, a sua agonia e humilhação é, para muitos, bárbara, cruel e mesquinha, um momento injustificável da ausência e do silêncio de Deus, levando-os a não crer num Deus do bem e misericordioso, antes sim num Deus inflexível, punitivo e mau que, podendo, não elimina o mal.
Esta apatia de Deus à dor, esta omissão e indiferença na relação que devemos ter com o outro, que deve ser o centro do nosso olhar e compaixão quando sofre, conduz muitas pessoas a questionarem-se se se pode acreditar em Deus, concluindo que não e tornando-se ateus. O mesmo perante os horrores do holocausto, a iniquidade de Auschwitz e do Goulag, os males da guerra e a pedofilia. Se Deus é infinitamente bom e criador do universo, porquê um Deus castigador, vingativo e sacrificial? Recordo, da minha infância, uma catequista ter justificado com a ira de Deus o afundamento do Titanic, provocado por um icebergue, dada a soberba humana de o ter como inafundável, sendo um exemplo de arrogância, vaidade e luxúria (pecado mortal).
É uma, entre várias, interrogações e interpretações, todas legítimas, em paralelo com a de que o universo é mais poderoso que nós, seres humanos frágeis e mortais, limitados na nossa finitude e imperfeição, portadores do bem e do mal, daí o afirmarmos, amiúde, que ninguém é perfeito, embora perfectíveis.
Pode compreender-se, assim, que quando Job reclamou de Deus que lhe explicasse o facto de ter permitido que a sua vida se transformasse num acumular de sofrimento, apesar de ser um homem bom, a resposta se baseasse em chamar-lhe a atenção para as leis dos fenómenos naturais, que nos ultrapassam, como os rios, oceanos, relâmpagos, trovão, chuva, orvalho, granizo, neve, astros, céus, a que podemos adicionar a imensidão e o esmagamento de glaciares, icebergues, desertos, montanhas, dado que o universo é maior que nós, não estando ao nosso alcance saber a que lógica obedece, não admirando que Job não compreendesse o porquê do que de ilógico, em termos humanos, lhe acontecera, o que não demonstra que o universo seja ilógico per si.
Há inúmeros fenómenos no universo que diminuem a nossa dimensão, que nos fazem sentir a nossa pequenez e fragilidade, que indiciam e transportam em si uma força, grandeza e monumentalidade maior, que nos ameaçam e desafiam, provocando-nos admiração e respeito, mesmo se humilhados porque mais poderosos que nós, o que se pode combinar com um desejo de adoração ou exclamação diante do ilimitado e sublime, lembrando-nos que a nossa vida (e a razão) não é a medida de todas as coisas, o que não implica aceitar, sem mais, a indiferença e a resignação.
11.08.23
Joaquim M. M. Patrício