CRÓNICAS PLURICULTURAIS
148. A CRISE DAS CIÊNCIAS HUMANAS
Aquando de uma recente estadia em Lisboa, para participar numa conferência na Faculdade de Letras, o académico e teórico norte-americano Stanley Fish, em entrevista ao Público, manifestou a sua descrença nas ciências humanas, nos seguintes termos:
“Pergunta: - Outro dos temas acerca dos quais tem escrito bastante é sobre a crise das ciências humanas. Acha que é possível, depois de tudo o que temos assistido, recuperar de alguma forma a confiança nas humanidades?
Resposta: - Não me parece. Antes, pensava-se que aqueles que desejavam ser bem-sucedidos no mundo dos negócios, no mundo jurídico, que queriam ser líderes ou ter uma participação forte em qualquer dessas conversas teriam de saber reconhecer uma citação de Shakespeare ou Sartre. Para serem reconhecidos, tinham de frequentar o mesmo tipo de escolas e divertirem-se nos mesmos tipos de jantares. A chamada língua franca dessa elite era a partilha de um quadro de referências culturais. Isso desapareceu. Não se ganham pontos fora da academia por se citar um poeta ou uma figura mitológica, por se remontar a algo dito por Platão, por Sócrates ou por Aristóteles. Quem esperar isso vai ser olhado como um lunático. (…)
Pergunta: - O que veio substituir isso?
Resposta: - A competência tecnológica, a capacidade de efetuar operações difíceis no mundo da estatística e dos computadores. Aquilo a que nos EUA se chama “tech savvy” substituiu o valor cultural de estar profundamente enraizado nas velhas transições de aprendizagem e não vejo, de momento, como inverter isso, e com todo o discurso à volta da inteligência artificial acho que vai simplesmente ficar fortalecido.”
Este discurso pessimista, consciente ou não - mesmo não o referindo em termos explícitos - tem a utilidade económica imediata e a empregabilidade potencial como critério preferencial do que é útil ou inútil, indo de encontro aos que têm tais ciências como antiguidades, tempos idos perdidos que não voltam, atividades de mera autocontemplação e gratificação, elitistas e subsídio-dependentes, desprovidas de valor social e não geradoras de patentes potencialmente lucrativas.
Pretende-se reimplantar a ancestral hierarquia dos saberes a partir de raciocínios fundados numa pretensa utilidade económica, priorizando essencialmente ou apenas as ciências aplicadas, com prejuízo estrutural e sistemático das ciências humanas ou “puras” tidas, por definição, nesta perspetiva, um fim em si mesmas e, como tal, economicamente improdutivas.
Devem privilegiar-se as “indústrias culturais” de impacto público, geradoras de dividendos económicos e mais-valias e não as vanguardas artísticas experimentais?
Será que as ciências, no seu todo, incluindo as aplicadas, humanas (sem excluir as sociais), “puras” e “duras”, não são transversais à reflexão, criatividade e interação?
(Continua …)
01.09.23
Joaquim M. M. Patrício