CRÓNICAS PLURICULTURAIS
164. QUEM QUER EXERCER O PODER NO PRESENTE TEM DE DESTRUIR O PASSADO?
1. Com o desumano assassinato de George Floyd gerou-se uma vaga de indignação global contra o racismo. Aproveitando a ocasião grupos radicais ativaram uma guerra cultural contra o que têm como símbolos do colonialismo e opressão, através do apeamento, desmembramento e vandalização de memoriais e monumentos tidos como colonialistas, opressores e racistas.
Ao longo da História humana sempre foram destruídos patrimónios civilizacionais, em nome de Deus, da fé, de ideologias, de poderes instituídos, de direitos tidos como inalienáveis, de utopias compensadoras, redentoras e salvíficas.
Impõe-se referir que a destruição do passado em termos culturais, patrimoniais e civilizacionais tem sido transversal a todos os poderes e civilizações, uma caraterística constante e permanente que tem atravessado todos os conquistadores e vencedores, desde o Ocidente ao Oriente, do Norte a Sul, não sendo um exclusivo ocidental.
Jerusalém, com a sua simbologia de cidade sagrada, é um exemplo, com as suas sucessivas ocupações e destruições (a começar pela destruição do Templo de Salomão e Herodes), desde a ocupação Judaica, Babilónica, Grega, Ptolemaica, do Reino Asmoneu, Romana, Bizantina, Persa, Islâmica, das Cruzadas, de Saladino, dos Mamelucos, Otomana, Britânica, Israel/Jordânia e Israel.
Só que o repúdio e revolta, mesmo que legítimos, por atos praticados contra a raça ou a cultura daqueles que se têm por vencidos, oprimidos ou explorados, não justificam, quanto a nós, que se destruam os símbolos de identidade cultural e patrimonial dos que têm como vencedores, por maioria de razão quando estes lhes permitem, na sua própria casa, manifestar-se e protestar, ao invés de países não democráticos, que não censuram, onde nunca poderiam exercer o direito à indignação e de opinião que exercem no Ocidente.
Se o presente interpela o passado, se aceitamos uma pluralidade de visões e diferentes memórias civilizacionais, a História tem de ser, no mínimo, a visão do vencedor e do vencido, o que levanta a questão, no nosso tempo e circunstâncias, do que é tolerável e intolerável na nossa memória coletiva.
Em regimes autocráticos, ditatoriais e totalitários, apela-se a uma visão única da História, do tudo ou nada. Apelidar obras de arte de “degeneradas”, como Goebbels, durante o nazismo, a arte ocidental de “decadente, burguesa, capitalista e reacionária”, como Lenine na União Soviética, de “contaminadas”, no Estado Novo, a artes miscigenadas no âmbito da colonização e do império, lembra a linguagem de um poder supremacista sobre afirmações culturais tidas como desprezíveis ou indignas.
2. Defendemos que os monumentos e memoriais, incluindo as letras e as artes em geral, são património histórico e cultural e, como tal, devem ser preservados, contra tudo e todos, o que exige às democracias saber o que fazer de uma memória tida como tolerável e intolerável, no seu tempo e nas suas circunstâncias, sendo inadmissível que se brutalizem, destruam ou vandalizem, tomando como arma de arremesso causas justas ou princípios universalmente consagrados, como o da justiça igualitária e social.
Se aceitamos que todas as obras de arte, incluindo a sua história, a museologia e as ciências do património, são um testemunho de uma História comum, do tempo em que foram produzidas, do que se seguiu e do atual, assim contribuindo para a configuração cultural e espiritual do mundo, também temos de aceitar que são permanentemente transcontemporâneas, não se esgotando na temática que representam.
Nesta sequência, o questionamento crítico sobre se uma determinada estátua, por exemplo, pode ser retirada, deslocalizada, armazenada, transferida para um museu, discutida, historicamente contextuada e enquadrada, até por razões meramente estéticas ou de gosto, pode ser exequível e ser aceite pela comunidade, mas não ser adulterada, apeada, brutalizada, destruída, vandalizada, muito menos quando a iconoclastia integra uma agenda de protesto. O mesmo quanto à remoção, destruição ou vandalização de esculturas ou pinturas que só num determinado enquadramento previamente programado se justificam, que são transcontextuais e isentas de culpa dos desmandos humanos, mas que podem, a todo o tempo, ser contextualizadas e confrontadas com esculturas e pinturas contemporâneas sobre os mesmos temas.
Mesmo que ideológica, política e socialmente comprometidos, os monumentos, memoriais e a arte em geral são sempre um testemunho vivo que suscita debate, controvérsia, seja no espaço público, museus, bibliotecas, igrejas, edifícios estatais ou civis, porque portadoras dos olhares do passado, do presente e do futuro.
E ao abrir e reconhecer uma parte oculta da História, pode-se enriquecer a narrativa, torná-la mais verídica.
Daí que quem quer exercer o poder sobre o presente não tem que destruir o passado. Mais fácil, sem dúvida, em sociedades onde se aceita o respeito por uma pluralidade de visões e de diferentes memórias, onde há liberdade de expressão, de manifestação e de protesto, amiúde não reconhecida por quem dela aí beneficia, por confronto com países onde a intolerância é a regra.
01.03.24
Joaquim M. M. Patrício