CRÓNICAS PLURICULTURAIS
Eleanor Roosevelt, presidente da Comissão dos Direitos Humanos na ONU (1946-1950), a segurar a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
186. ESCRUTÍNIOS ÉTICOS E LEGAIS
Antes das leis positivas, feitas pelos humanos, de natureza imperativa e coativa, há as normas éticas, tidas como leis-comandos, naturais ou inerentes à razão humana. Representam, algumas delas, valores éticos permanentes convertidos em lei, como o não matarás, um dos dez mandamentos das tábuas de Moisés.
Também há direitos humanos e fundamentais, consagrados da Declaração Universal dos Direitos Humanos e textos constitucionais, como o direito à vida, à integridade física, à saúde e à habitação, inspirados nas mais antigas preocupações éticas.
O que não surpreende, dado que sendo a ética uma consciência filosófica permanentemente crítica e dinâmica (ao invés da moral, mais conservadora e estática), adapta-se continuamente à exigência de descoberta e apresentação dos comportamentos sociais obrigatórios, sendo uma filosofia de evolução.
Mas o que é ético não é forçosamente legal, porque a legalidade tem a ver com a conformidade com a lei, o que pode não coincidir com uma avaliação ética.
É legal vender uma casa ou um veículo automóvel em mau estado de conservação pelo preço que valem, embora seja eticamente censurável esconder do comprador o seu estado. Sendo também condenável, em termos éticos, não pagar uma dívida prescrita, que subsiste, apesar de extinta e não exigível judicialmente.
A ética é mais restritiva que a lei, nem aceita que os meios justifiquem os fins, pois a natureza ética de um ato não advém de este produzir ou não resultados positivos.
E há cada vez mais, com especial incidência nos regimes democráticos mais evoluídos, mecanismos de avaliação ou de fiscalização de integridade pessoal, mais conhecidos pelo termo inglês vetting (ou fit and proper test), que servem para escrutinar o percurso de certas pessoas que são candidatas a um determinado cargo político ou de elevado grau de confiança pública, onde a avaliação ética é fundamental.
Indagando para que servem e provando a dificuldade de escrutinar e decidir questões éticas, via regras fechadas, num determinado contexto, dá-se o exemplo de alguém que se candidata ao exercício de certas funções numa organização internacional, de elevado grau de confiança pública, que foi condenado por crimes e cumpriu pena de prisão vários anos, e que é liminarmente excluído, tomando como referência a regra geral, o que faz sentido. Exclusão sem cabimento se esse condenado for alguém como Mandela ou outro preso político, nas mesmas circunstâncias, por delitos similares. Por um lado, nenhuma lei consegue prever todas as circunstâncias, por outro, a condenação e/ou a prisão podem ter acontecido por motivos que confirmam a integridade pessoal (ética e legal) do candidato, em vez de o colocar em questão.
Este juízo ético informado ou sistema de avaliação ética de fiscalização prévia de uma pessoa ao exercício de certas funções, escrutinando o seu percurso e avaliando a sua integridade, reforça a confiança pública nos detentores desses cargos, desde que os cidadãos confiem nessa avaliação, o que nem sempre sucede havendo, com regularidade, uma mera censura ética que é insuficiente por confronto com a regra legal, categórica e abstrata, emanada de uma autoridade soberana que impõe aos seus destinatários uma obrigação de submissão, sob pena de serem sancionados.
E se é verdade que nenhum sistema legal e de vetting consegue evitar todos os problemas legais e de ética, também qualquer sistema de avaliação tem de ser concebido para reforçar o escrutínio público (não o substituindo) detetando, por exemplo, eventuais conflitos de interesses que possam antecipadamente ser regulados ou aclarados, tornando público o que foi feito. E à medida que o escrutínio dos cidadãos aumenta, através dos meios de comunicação social, mais exigível será o escrutínio ético, contribuindo para um maior escrutínio legal, incluindo o político, de modo a garantir a defesa do bem comum.
P.S. Estimadas leitoras e leitores, até setembro!
02.08.24
Joaquim M. M. Patrício