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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    © Miguel A. Lopes/Lusa


200. SOBREVIVER DISSOCIADO/A DA BIOLOGIA


Fala-se na identidade eletrónica como totalmente dissociada da existência biológica, como um substituto digital da pessoa física capaz de comunicar eternamente e de forma desmaterializada com as pessoas que ainda são vivas.

Há toda uma panóplia de novas tecnologias que tentam tornar cada vez mais concreta e eficaz a ficção da imortalidade, criando formas de virtualidade cada vez mais perfeitas, sobrevivendo uma estrutura ou perfil virtual ao corpo biológico.

Até se fala em morte digital (e herdeiros digitais), para que, depois de mortos, não sejamos esquecidos, mas sim virtualmente imortais, garantindo-nos uma eterna sobrevivência sob o modo desmaterializado de espetros digitais.   

Presume-se que à pergunta “Who wants live forever?”(“Quem quer viver eternamente?”), a resposta será, na quase totalidade ou cabalmente, positiva, pelo que há startups vocacionadas para estes novos negócios, crescentemente mais rentáveis, dada a enorme abertura e disponibilidade das pessoas em geral às novas tecnologias informáticas, incluindo uma crescente dependência das redes sociais onde fazem da sua privacidade letra morta.   

Mas, pensando melhor, não se indicia ter sido a descoberta do digital que nos permite concluir que, antes dele, não existia uma sobrevivência dissociada da biologia, uma vez que, desde a descoberta da escrita, sempre subsistiu esse modo de sobreviver, sob a forma materializada de documentos, textos e livros, que hoje podem ser duplamente sobreviventes via desmaterialização.     

Tantas vezes sem qualquer contacto físico ou presencial, como o provam amizades e relações epistolares entre vários interlocutores, em que quem escrevia de longe era visto num plano espiritual, imaterial, diferente daquele através do qual vemos quem conhecemos, não permitindo ver, ou ver menos, as imperfeições e insuficiências do outro, numa certa analogia com quem só lidamos eletronicamente.     

O mesmo se pode dizer quanto às mensagens do ritual simbólico inerente aos espetáculos e concertos de despedida de atores, cantores e músicos, entre outros, que são um modo de dizer, aos seus públicos, que podem procurá-los no que gravaram, em áudio e vídeo, em vida, após abandonarem os palcos.   

Numa certa perspetiva, intui-se não haver nada de novo debaixo do sol, embora, analisando bem, há muitas coisas novas debaixo do astro solar. O que permanece sempre, em qualquer das situações, é o desejo de não se ser ingloriamente esquecido após a morte biológica.


14.02.25
Joaquim M. M. Patrício