CRÓNICAS PLURICULTURAIS
9. INTUIÇÃO E EMOÇÃO NO PROCESSO CRIATIVO
“Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou no céu-da-boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. (…) Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la?
Bebo um segundo gole, no qual nada encontro a mais que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a diminuir. É evidente que a verdade que procuro não está nela, mas em mim.”
MARCEL PROUST
É exemplar esta passagem de Proust na sua obra Em Busca do Tempo Perdido, em que um gole de chá e um bolo amanteigado e aromatizado com raspa de limão, uma afamada madalena, através dos quais a mente se revela, são reduzidos aos seus elementos psicológicos na sua estrutura mental, espiritual, imaterial e impalpável, recuperando o tempo perdido através de aromas e sabores que dão causa a lembranças de momentos passados.
Acreditando que só nos podíamos compreender a nós mesmos pela intuição, celebrando-a na literatura, Proust foi um dos primeiros artistas a interiorizar a filosofia de Begson, segundo a qual tendo nós consciência, uma memória e um ser, tal realidade não pode ser dissecada experimentalmente, só nos podendo conhecer a nós próprios intuitivamente, via introspeção e meditação, podendo as leis mecanicistas da ciência ser boas para a matéria inerte, mas não para nós, seres humanos.
A sensação é para Proust o que a experimentação é para o cientista.
Trata-se de um processo criativo que ocorre no âmbito da intuição.
Os processos de criação ocorrem primordial e essencialmente por via intuitiva, o que é corroborado, aperfeiçoado e enriquecido pela neurociência, onde a emoção também faz parte da razão, pois um cérebro que não sente não decide, sendo o olfato e o paladar tidos como sentidos singularmente sentimentais, uma vez ligados ao hipocampo, o centro de memória cerebral de longo prazo.
A literatura, o teatro, o cinema, a música, são metáforas poderosas e intensas em relação ao que se passa na nossa mente. Adequam-se e adaptam-se bem ao espírito e cérebro humano, mas são suas representações, dada a maior complexidade do ser humano, que é corpo e mente que funcionam como um todo.
Já não basta a razão pura, havendo que valorizar o corpo em termos neurofisiológicos, aceitando as emoções e educando-as, dado que estas, além de imprescindíveis, não são sempre más e de resultados negativos, rejeitando a ideia de que as emoções e os sentimentos são incapazes (ou menos capazes) de boas decisões, tidas como emocionais e impulsivas, ao invés das reais boas decisões, tomadas racionalmente de cabeça fria.
Esta nova valorização do papel da intuição e da emoção no âmbito da criatividade e do núcleo duro do pensamento científico, onde se destaca o neurocientista português António Damásio e sua mulher (Hanna) é crucial para a partilha e interligação das ciências, um meio para a integração das chamadas ciências “duras” e tradicionais com as ciências sociais e humanas via emergência e criação de um novo paradigma de conhecimento, em que intuição e emoção fazem parte da razão.
08.05.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício