CRÓNICAS PLURICULTURAIS
16. STEINER, A CIÊNCIA E AS HUMANIDADES
“Toda a minha vida foi dominada pela pergunta: como é que aquilo pôde acontecer na Europa? Como é que por trás da casa de Goethe existe um campo de concentração? Como é que o país mais educado do mundo se tornou nazi? Nunca se esqueça que a educação na Alemanha era provavelmente a mais avançada, mas não foi suficiente para travar Hitler. Toda a minha vida me interroguei sobre se as humanidades realmente humanizam”.
“As ciências não conhecem a hipocrisia, não fazem bluff. Na ciência verdadeira há o certo e o errado, e quem faz batota é obrigado a sair do jogo. Pelo contrário, as chamadas “ciências sociais” fazem bluff o tempo todo, estão cheias de mentira, de conversa fiada”.
“E também existe outro fenómeno: pode ser-se um grande artista e um assassino, uma pessoa a favor do extermínio”.
“Quando ouço os cientistas, sinto alegria. Estão a passar um bom bocado” (excertos da entrevista de Steiner ao semanário Expresso, de 03.06.17).
Ao elogiar a ciência e vaticinar a queda e ambiguidade das humanidades, George Steiner (GS) tem uma visão idealizada e exaltante da ciência, contrária ao pessimismo que tem pelas humanidades.
Sendo um pensador, crítico literário, escritor, filósofo e um dos expoentes máximos da grande cultura europeia, é um homem especialista das humanidades.
Porquê, então, este desencanto com as humanidades?
Uma das razões é não terem evitado barbáries e crimes contra a humanidade como o holocausto, o antissemitismo estar de novo a aumentar por toda a parte, com os judeus em perigo iminente, num fenómeno sem fim à vista, não se tendo aprendido absolutamente nada com a História.
De origem judia, sente-se perplexo pela sua sobrevivência, “é um milagre ter sobrevivido”, o que significa ter ao longo da vida a obrigação ética de não esquecer os que não sobreviveram.
Idealiza, em alternativa, como refúgio, compensação e redenção, uma ciência idealista e verdadeira, desconhecedora da falsidade, do fingimento, da simulação e manipulação linguística das mentiras do totalitarismo linguístico.
Que ciência é esta? Ela existe? Existe uma ciência verdadeira que não conhece a hipocrisia, nem faz bluff?
É um dado adquirido que na ciência também há mentira, dissimulação, falsidade, erros e hipocrisia.
E há a interpretação, propaganda e manipulação dos resultados, consoante é feita por A, B, X ou Y.
Que dizer da bomba atómica e da inovação nuclear, a propósito de um lado negro, ou reino das trevas, das ciências, que desumanizam, e não humanizam?
O génio e talento de alguém na ciência não o torna uma boa pessoa.
O génio e talento de alguém nas artes e humanidades em geral não o torna uma boa pessoa.
O ser-se um guru da ciência ou das humanidades não faz, quem quer que seja, uma boa pessoa.
Nem as humanidades, nem a arte, nem a ciência é a pessoa. Estão acima do autor. Libertam-se da pessoa, do criador.
Steiner, depois de dizer, perplexo:
“Há um momento muito importante nos diálogos de Cosima Wagner, em que Wagner está lá em cima, no primeiro andar, e ela ouve-o ao piano a rever o 3.º ato do “Tristão”. Ele desce para almoçar, e de que é que eles falam? De como queimar os judeus. O homem que tinha estado a compor a melhor música do mundo desce para almoçar e discute alegremente como livrar-se dos judeus”.
Dá a resposta, questionando-se: “O que quero dizer é que eu não poderia viver num mundo sem a música de Wagner. A minha dívida para com ele é enorme. A minha dívida para com Nietszche, para com Céline! Que livros belos e horrendos! Não tenho resposta para estas pessoas. Não há explicação. Perante os gigantes temos de ficar calados”.
Uma obra cultural ou científica vale por si, independentemente das opções políticas, científicas, filosóficas, religiosas ou sociais do seu autor.
A ciência e as humanidades não são invenção recente, sempre existiram, no seu melhor e pior, em curiosidade e interligação autónoma e recíproca, havendo que saber distinguir entre a obra em si ou ao serviço de qualquer coisa, entre a obra “pura” e a pessoa ou a vontade do seu criador.
De maior desencanto seria viver num mundo em que não houvesse lugar para as questões colocadas pelas ciências sociais e humanidades em geral, e tão só, ou quase em exclusivo, para a descoberta e progresso científico que GS tem como ciência verdadeira, que também peca por défice, numa idealização excessiva e sacralizada, a nosso ver.
18.09.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício