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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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D. JOÃO V - O REI ECLIPSE

  


«O seu carácter não é facilmente definível. É ciumento da dignidade do seu trono e da sua qualidade de rei. (…) Firme e rigoroso observador da justiça, propõe-se fazer florir as Belas-Artes no seu reino; ama muito e demasiado as cerimónias da Igreja». Assim definiu Étienne Silhouette o rei D. João V. Os primeiros anos do seu reinado foram marcados pela guerra da sucessão de Espanha (1701-1714), que deixou o reino e os povos empobrecidos. Por morte do enfermiço Carlos II, sem herdeiros diretos, foi Filipe d’Anjou designado para lhe suceder, contra a solução defendida pelo Imperador Leopoldo I de Habsburgo, a favor de seu filho Carlos, criando-se a Grande Aliança da Áustria, Inglaterra, Países Baixos, Dinamarca e Portugal. D. João V herdou de seu pai D. Pedro II esta guerra muito onerosa, um ano depois do Marquês das Minas ter invadido Madrid à frente do exército confederado, mas teve de se retirar por razões diplomáticas, sem consumar a aclamação de Carlos d’Áustria. Se o nosso rei Magnânimo admirava Luís XIV, o rei Sol, o certo é que se afirmou como contraponto a ele. E se 1715, o primeiro ano de paz, depois do tratado de Utreque, pôde simbolizar-se como Jano, o deus das duas faces, o nosso rei, depois do eclipse forçado da guerra, lua escondendo o sol, começou a emitir o seu brilho, incentivado pela rainha Maria Ana, filha de Leopoldo, para tomar decisões em mãos para que marcasse o seu reinado com reformas, apondo-lhes a sua própria visão. Como diria o confessor da Rainha: “Persuadindo-lhe que não lograsse o bem da república, se Sua Majestade não aplicasse os seus deveres ao curso dos negócios e tomasse ele mesmo o leme”. As embaixadas de fausto que enviou a Leopoldo I (1708), a Luís XIV (1715) e ao Papa Clemente XI (1716) deram brado.


A biografia de D. João V, saída a lume da autoria de Pedro Sena-Lino, El-Rei Eclipse (Contraponto, 2024) dá-nos uma leitura multifacetada e precisa de Portugal e da Europa no século charneira de setecentos. A guerra paga pela afluência do ouro brasileiro, permitiu a Portugal, sem ter ganho (como outros) territórios europeus, apenas Colónia de Sacramento e a regularização da Amazónia, o reconhecimento internacional e o prestígio da dinastia na balança da Europa. Em vez de Rei-Sol, o brilho do português alcançar-se-ia como espelho ou como caleidoscópio. E o reino sem guerra não tinha franceses como vizinhos, mas um rei Bourbon, Filipe V, com Madrid e Paris unidos pelo mesmo sangue. O reinado de D. João V, por vezes pouco conhecido, corresponde, de facto, às duas faces de Jano, lançando as bases do iluminismo, de que o embaixador D. Luís da Cunha é exemplo. A ciência e as artes confluem, o rei construtor singulariza-se na obra extraordinária de Mafra, onde o sublime procura encontrar-se, também com a mais rica e numerosa Biblioteca, possuindo tudo de relevante, o que contrastava com o fanatismo das proibições para o vulgo. O Aqueduto das Águas Livres era o sinal de progresso para os povos. E havia os melhores músicos e instrumentos, e a misteriosa produção de Bartolomeu Lourenço de Gusmão, irmão do grande diplomata, secretário do rei, Alexandre de Gusmão. Já retido no leito D. João carteia-se com sua filha Maria Bárbara, rainha de Espanha, mulher de Fernando VI, e sentimos os ecos da grande política. Os eclipses são momentâneos, mas a luz essencial fica.


GOM