DE VOLTA ÀS VOLTAS DO KABUKI
Minha Princesa de mim:
De regresso ao Japão, tenho os dias ocupados por intermináveis reuniões e relatórios em que procuro resumi-las. Mas lá consegui um serão para ir ao Kabuki-za, ali em Ginza, ver a peça Sukeroku Yukari no Edo Sakura, título que explanatoriamente traduziria dizendo a mais bela flor (a sakura, a da cerejeira primaveril e infrutífera) de Edo (sede do shogunato Tokugawa, de 1603 a 1867, cujo nome, depois da restauração Meiji, em 1868, se tornou Tokyo, ou capital oriental ). Sukeroku é nome de empréstimo de um burguês cavaleiro em busca do assassino de seu pai que também lhe roubou a espada façanhuda, esta chamada Tomokirimaru. Para obrigar o vilão a denunciar-se puxando pela espada furtada, Sukeroku vai arrogantemente provocando os outros frequentadores dos prazeres venéreos de Shin-Yoshiwara, recinto de bordéis que também acolhe a sua cortesã favorita, Agemaki, a flor mais linda de Edo. Finalmente, Ikiú, o homicida, trai-se ao desembainhar a espada Tomokirimaru e acaba morto às mãos de Sukeroku. Enredo simples, quase linear. Mas que espetáculo colorido, cheio de danças e acrobacias, como filme do Zorro avant la lettre! A peça estreou-se em 1713, classificam-na os entendidos como sewamono ou contemporânea no tema, por oposição a jidaimono ou histórica, que são, afinal todas as peças anteriores ao período Edo (1603-1867), contando histórias com aristocráticas personagens e guerreiros. A Sukeroku Yukari no Edo Sakura entra no grupo das dezoito grandes do teatro Kabuki, as Juhachiban. Pessoalmente, considero sobretudo kabuki as peças que tratam temas da vida corrente do período Edo, dramas, intrigas, amores, deslizes e surpresas de gente comum, através de ações e representações ao gosto popular e burguês. Por vezes com alguma intenção de crítica social e política. Aliás,muitos jidaimono de histórico só tinham a época e o cenário da ação, sendo contemporâneos a crónica e o tratamento dela... Foge-se assim à censura que poderia reconhecer demasiadamente um senhor conhecido na personagem de um facínora, ou ainda assim se evita o incómodo de parecer coeva a história de um amor incestuoso (como em Seshu Gappô ga Tsuji ) ou de um padre libertino e, finalmente, demoníaco (como Narukami). Também na ópera europeia, Verdi teve de mudar para Rigoletto o nome (Triboulet) do bobo de Francisco I de França, cuja filha o monarca seduzira, e trazer a acção toda para a Mântua de outra época. Como também assim disfarçou Stifellio, Aroldo, Un Ballo in Maschera. Mas penso que por aí se ficam as semelhanças entre o Kabuki e a nossa ópera. Apesar de que esse teatro japonês também pretende ser uma arte global, reunindo declamação, música e canto, dança, cor e movimentação. Mas o conceito reunidor de tudo isso não é o mesmo, e não esqueçamos que o nascimento do Kabuki terá sido pela kabuki odori, danças tradicionais populares desempenhadas em Kyoto, no Shijogawara, por Izumo no Okuni, fartamente representada em várias "pinturas de género", bailando e tocando pandeireta. Pierre Devaux, francês estudioso da música japonesa tradicional, afirma que esta não é concebível sem a gesticulação de músicos, actores e dançarinos. O visual e o sonoro coexistem necessariamente, representam a ação e a palavra. Numa comunicação feita em Nagoya, por ocasião de um colóquio sobre Diderot. Le XVIIIème siècle en Europe et au Japon, Delvaux fez umas observações sobre a evolução musical no Japão e em França nesse século (que, como sabes, é o do surto da ópera). E diz: "Nunca poderemos aplicar ao Japão o que Rousseau diz do Ocidente: hoje os instrumentos são mais importantes do que a voz. E prossegue referindo que a música japonesa nunca se apropria de um espaço puramente harmónico, está sempre em contacto permanente com outros elementos como o ruído (designadamente os ruídos da natureza), a palavra ou o gesto, podendo dizer-se que procede de uma natureza aberta... Haverá dissonâncias, aparentemente desencontros, faltas de harmonia para o nosso sentido dela, mas tudo, finalmente se encaixa. Delvaux sai-se com esta conclusão surpreendente para nós: A música japonesa cultivou a justaposição de sistemas diferentes, e as escalas de origem chinesa e japonesa foram vivendo, como as religiões, em coexistência pacífica... Menos pacíficos foram sendo os fados dos actores que subiam aos palcos. Entre outros significados,a palavra kabuki teve,na origem, os de inédito, inconvencional, na moda ou, ainda, vanguardista. As danças e representações de Izumo no Okuni - que também se tornava notada por trazer ao peito um crucifixo, símbolo religioso mas, também, acessório de moda namban - foram encontrando imitadoras que se produziam nas casas de chá e outros locais de diversão, inclusive bordéis. O número crescente de prostitutas que as praticavam levou a que se fosse passando da designação onna kabuki (danças de mulheres) para a de yujo kabuki (danças de prostitutas). Por isso o shogunato Tokugawa proibiu a actuação dessas companhias e o aparecimento de mulheres em palco, a partir de 1629. Foram então substituídas por grupos de rapazes (wakashu) que, em 1652 foram igualmente proibidos por razões de moralidade pública. O teatro Kabuki teve de mudar de nome, por uns tempos, em que foi conhecido por "representações de maneiras e costumes" (monomane kyogen zukushi), sempre representado - como hoje ainda - por atores adultos do sexo masculino. E assim deparamos com outro paralelo histórico definido pela semelhança de conceitos ético-sociais: a interdição, na Europa, de mulheres como atrizes. E consequentemente, entre outras, a "criação" de castrati. Minha Princesa: há coisas, parece-nos, mais fáceis de perceber do que outras. Por isso tantas vezes nos enganamos mais do que o aceitável. Quem rejubila ao julgar-se pensador rápido e sagaz, talvez não entenda que tudo se vai passando por misteriosas combinações e inesperáveis encontros do que talvez saibamos e do muito mais que nem as melhores explicações nos dão a conhecer. Surpreender semelhanças nem sempre será descobrir relações de causa a efeito. Doutras vezes somos apanhados sem aviso prévio, como eu quando deparei, a partir de um colóquio em Nagoya, com a leitura assídua de Diderot e dos das "luzes" francesas por tantos pensadores japoneses... Faz-me refletir muito no que seja pensarsentir. O encontro das culturas - ou seu simples cotejo - é um imparável caleidoscópio de sensibilidades e razões. Falar-te-ei nisso quando for ainda mais velhinho. Dou-te a mão do coração.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira