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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO IX

 

   O segundo capítulo de Relance da  Alma Japonesa, de Wencesalau de Moraes, intitula-se A Linguagem e começa assim:

 

   A linguagem é a tradução do pensamento, do sentimento, do indivíduo, como de um povo. O homem, como o povo, fala para manifestar o que ele pensa, o que ele sente. A linguagem de um povo não foi, evidentemente, a invenção de um homem, mas o trabalho de um povo, trabalho constituído lentamente, mui lentamente, e progredindo à medida que os seus conhecimentos se alargavam e que as palavras lhe faltavam para exprimir o pensamento...   ... Estudar a linguagem de um povo é colher de surpresa os elementos mais preciosos para julgar da sua alma, isto é, da sua maneira de ver e de sentir, do seu carácter enfim...

 

   Esta introdução parece-me necessária para melhor entendermos, à luz do próprio autor, o que Moraes afirma nas citações que seguidamente dele faço:

 

   Começamos aqui a adivinhar um conceito da mais alta importância psíquica na mentalidade do nipónico: - a impersonalidade humana, perante os fenómenos da vida; o que quer que seja, que o reduz a simples comparsa de somenos importância, em presença do grandioso drama da natureza criadora.

 

   Na língua japonesa, se excetuarmos um ou dois termos, raramente empregados, que designam a primeira pessoa, pode dizer-se que não há pronomes pessoais. A consequência imediata deste curiosíssimo fenómeno filológico é não haver senão uma palavra para cada modo e tempo de cada verbo. Assim, o presente do indicativo do verbo ver - eu vejo, tu vês, ele vê, nós vemos vós vedes, eles vêem - traduz-se em japonês, em qualquer dos casos, por uma única palavra invariável, miru; do mesmo modo, o pretérito perfeito do indicativo do mesmo verbo - eu vi, tu viste, ele viu, nós vimos, vós vistes, eles viram - traduz-se por uma única palavra invariável, mita; na conjugação dos verbos japoneses não se têm em conta as pessoas.

 

   Wenceslau de Moraes tinha, em autodidata, um conhecimento incipiente da língua japonesa, mas como espírito curioso de tudo, sempre procurava credível informação. Por isso mesmo se instruiu junto de um francês, gramático da língua nipónica, Cyprien Balet, que lhe ensinou o seguinte: «Para a exata compreensão da frase japonesa, a questão do sujeito reclama algumas explicações.  Pode-se considera-lo sob dois aspetos, o gramatical e o lógico. No primeiro caso, diz-se sujeito o que aciona ou experimenta a força da energia expressa pelo verbo, ao qual ele está ligado de modo tão íntimo que qualquer alteração em número, género ou pessoa alterará a forma do verbo. No segundo caso, o sujeito mais não é do que o primeiro termo de uma proposição, sobre o qual se enunciam apreciações diversas, sem haver correlação necessária entre ele e o verbo. Estabelecida claramente esta distinção, pode e deve dizer-se que não há sujeito gramatical em japonês. Na verdade, é notório que a noção de pessoa, isto é, de um ser subsistente e potencial, não existe nessa língua. Rigorosamente decorrente de tal facto, é a impersonalidade absoluta do verbo, o qual apenas exprime um acontecimento, estado ou paixão, sem relação com a pessoa. Daí a afirmação de uma única e invariável forma para cada tempo e cada modo do verbo: só a distinção do género e do número das pessoas, ou, ainda, seu conceito nítido e determinante poderiam ter motivado uma ligação direta ao verbo e envolver neste flexões diversas relacionadas com as variações daquelas. Há quem diga que, no latim e no grego, os verbos têm flexões variadas em cada tempo, embora a pessoa não seja expressa: é verdade, mas nessas línguas a pessoa é subentendida, enquanto que em japonês não existe. Em tais condições, o sujeito em japonês só poderia ser concebido enquanto ser, do qual se afirma ou se nega que tal facto, tal ação ou paixão, tendo lugar, tendo tido lugar, ou devendo ter lugar, são dele, pertencem-lhe. Eis porque, falando logicamente, o sujeito não poderia vir ligado ao verbo se não na forma de genitivo, por uma das pós-posições ga ou no, que servem para indicar posse ou dependência. E tal tem lugar, quer na língua clássica quer na corrente...»  E ao gramático francês continuará recorrendo Wenceslau, para apoio da sua intuição:

 

   «Tomemos a palavra ikimashô, que é o futuro dubitativo do verbo iku, ir. Poderá tal palavra significar, segundo os casos, eu irei, tu irás, ele irá, nós iremos, vós ireis, eles irão... Melhor: ela não significa nada de tudo isso, antes e tão só "haverá provavelmente o facto de ir..." E do mesmo modo para todos os tempos do verbo: não estando a pessoa concebida como ser concreto, subsistente e atuante, mas sendo apenas expressa por qualidades e relações exteriores ao indivíduo, a ação ou paixão contidas no verbo serão necessariamente concebidas como impessoais...»

 

   Mas Moraes irá ainda buscar outro exemplo para que melhor cheguemos à sua ideia, e a partilhemos. Cito o próprio Wenceslau:

 

   Tomemos o presente do indicativo do verbo "chover", chove, verbo português que parece ter sido inventado por um gramático japonês, tão de molde vem ele para explicar uma curiosíssima característica de língua japonesa. Com efeito, ei-lo, no presente do indicativo, como em todos os outros tempos, invariável, impessoal, sem sujeito determinado, exprimindo em si uma ação independente e intransitiva. Se todos os nossos verbos fossem da índole do verbo chover e de mais alguns outros (nevar, trovejar, etc.), teríamos a nossa gramática e a nossa linguagem transformadas numa gramática e numa linguagem impessoais, sem pronomes pessoais  -  por inúteis, sem flexões nos tempos dos verbos, sem sujeito determinado. Mas não sucede assim. Sucede porém assim, exatamente assim, na gramática e na linguagem japonesas, com as suas consequências inevitáveis. A linguagem traduz, como sabemos, a sentimentalidade do povo que a fala. Chegamos assim a concluir o seguinte facto: - a impersonalidade do japonês perante os fenómenos da vida, - isto é, a sua voluntária isenção em participar, como fator ativo, no conjunto das modalidades naturais. Chover, comer, dormir são simplesmente factos ocorridos, cuja ação não se transmite ao indivíduo. Devemos mais concluir que tal impersonalidade representa uma característica da alma nipónica, nascida no seu próprio íntimo...

 

   Da minha experiência de alguns anos no Japão fiquei a pensarsentir, recorrentemente, que são muito íntimos os paradoxos em que se debatem e por que se guiam os espíritos nipónicos, em eternas lutas de Jacó com o Anjo.  Há muito mais do que nos pode dar apenas um relance da alma japonesa. E só o que, brevemente, o presente texto já nos promete, justifica que, passados estes dias que me vão afligindo, eu volte ao esforço de tentar entender melhor essa condição de impersonalidade...   

  

Camilo Martins de Oliveira