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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO VII

   

   A metamorfose de L’homme et son désir em La Femme et son Ombre, de que falam textos anteriores desta Rebusca do Japão, é um interessante exemplo de aculturação, que também nos faculta melhor compreensão da capacidade nipónica de se debruçar sobre outras culturas e lhes abrir os frutos que irá "digerindo" na sua própria cultura. Voltaremos a este e outros temas já oportunamente suscitados, bem como a um olhar mais atento sobre o teatro e a dança no Japão, designadamente o teatro Nô. Mas desta feita, falarei sobretudo das relações culturais e linguísticas dos japoneses com povos ocidentais, nomeadamente o português, referindo-me à abertura ao exterior assinalada pela Restauração Meiji - uma espécie de Iluminismo nipónico oitocentista - e anos seguintes.

 

   Os resquícios da língua portuguesa na fala japonesa atravessaram séculos, mas são poucos e quase irrelevantes: vocábulos próprios ao culto católico, cuja origem lusitana se confunde, aliás, com a latina, esta sendo utilizada na liturgia e na doutrina, e outros designando sobretudo produtos, artigos e bens de consumo trazidos pelo comércio português, entre os quais alguns que fizeram moda no sol Nascente. Para além da religião cristã - aliás forçada à clandestinidade - e de hábitos de vestuário e adornos, que ainda hoje vemos representados nos famosos biombos nambam e em inúmeras pinturas japonesas posteriores à expulsão dos portugueses e cristãos, por terem feito moda, pouco ficou como marca da presença portuguesa no século XVI/XVII, muito embora, por exemplo e para lembrança, se possa falar de receitas de higiene e alimentação, de técnicas de pintura ou de cartografia.

 

   Com o confinamento da presença comercial externa na ilha artificial de Deshima (literalmente "ilha de fora"), em Nagasaki, os únicos parceiros autorizados, além duns chineses, passaram a ser holandeses. E em língua holandesa chegavam notícias e algumas obras de índole científica e técnica, pelo que, aquando da Restauração Meiji, houve grande procura de conhecimento desse idioma, mas logo preterida pela aprendizagem do inglês. língua do comodoro americano Perry (que forçara a abertura dos portos nipónicos) e doutra potência comercial, militar e técnica ocidental na Ásia do tempo, o Reino Unido. O francês foi sendo divulgado pelos missionários católicos gauleses, inicialmente vindos das missões na China, mas tornou-se depois utilizado pelos juristas japoneses que pretendiam montar uma versão nipónica do direito napoleónico e ainda nos meios literários e artísticos, em virtude do prestígio de Paris nessas áreas. A ação de Claudel que viemos relatando inscreve-se nessa perspetiva, ainda no primeiro quartel do século XX. 

 

   Em traços largos, o panorama desenha-se com forte influência: britânica em matéria de administração e pertinentes regulamentos (a circulação pela esquerda, por exemplo), de engenharia, indústria e comércio; francesa no pensamento, quer filosófico, quer jurídico, nas artes e letras; alemã nas ciências naturais e médicas, e na organização militar sobretudo. E o inglês vai-se divulgando como língua franca e de comunicação internacional.

 

   A proeminência britânica ou anglosaxónica explica-se, quer pela crescente presença dos EUA no extremo oriente, quer, já antes, pela importância do próprio Império Britânico naquela zona e na Ásia do sul. Em carta do Japão, datada de 8 de Abril de 1902, escreve Wenceslau de Moraes: O que ultimamente mais tem ocupado o espírito deste bom povo é a aliança anglo-japonesa; festas, discursos elogiosos, largos comentários na imprensa, enfim todas manifestações do orgulho nacional, que neste país é supino, excitado pelo magno acontecimento de vir uma prestigiosíssima nação da Europa dar as mãos ao Japão, para em comum cuidarem dos seus mútuos interesses no Extremo-Oriente, tudo isto tem agitado o teatro de multíplices intrigas e cobiças. É, pois, bem justificável o entusiasmo japonês.

 

   Sobre a lucidez do nosso Cônsul em Hyogo (Kobe e Osaka) aqui voltaremos. Também para melhor entendermos a nossa quase insignificante posição no concerto internacional que então se iniciava no Extremo Asiático... Mas deixem-me traduzir-vos hoje um trecho do Tojin Orai, de Fukuzawa Yukichi (1835-1901), introdução ao seu celebrado Manifesto pela Modernidade, afinal a summa das suas obras completas, trabalho fundamental para o pensamento nipónico da Restauração Meiji, porfiado esforço de recolocação do Japão na cena e no concerto internacional. Diz-nos respeito:

 

   O país que se chama Portugal foi outrora bastante próspero, mas tem-se empobrecido cada vez mais nestes últimos anos, o seu exército apenas conta com vinte ou trinta mil homens, apenas possui quatro navios a vapor, e estão pouco desenvolvidos todos os outros equipamentos. Não se compara à Inglaterra ou à França, é um país fraco, mas como sempre conduziu uma política correta e cultiva relações sinceras com os outros países, sem que tal o prejudique, mesmo se, numa relação de forças, quer a França, quer a Inglaterra acabassem com ele, nada disso acontece. No seio da Europa mantém relações e igualdade com os outros países, sem se deixar distanciar, e além disso até possui um território ultramarino chamado Macau no longínquo continente asiático, e também tem um tratado com o Japão, é um país bastante escutado. Quando pensamos na sua situação, podemos imaginar que tão fraco país independente no seio da Europa seria objeto de cobiça de todos os lados, e ficaria em perigo, mas nenhum país respeitador do direito internacional arriscaria tal intervenção. Se algum deles, tomado de loucura, atacasse Portugal, logo outro surgiria para o salvar. Por exemplo: se a França o atacasse, a Inglaterra viria em seu socorro, se a Rússia lhe declarasse guerra, a França enviaria reforços. Assim, ninguém tenta seja o que for e tal país vive em paz já há uns tempos.

 

Camilo Martins de Oliveira