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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO XII

   
  Como está escrito nos Contos de Genji, o caminho do amor neste mundo escapa à razão... 
Saikaku evoca esta suposta citação da célebre novela de Murasaki no seu famoso Gonin Onna, histórias de cinco mulheres apaixonadas. Não encontro tal frase no romance do século X, mas devo-lhe um melhor entendimento das intenções do romancista Ihara Saikaku quando, sete séculos mais tarde, reúne em volume aquelas cinco narrativas de amores trágicos... No comentário que anexa à sua versão francesa do Gonin Onna - e que é, afinal, constituído pelas suas próprias notas de leitura - Georges Bonmarchand escreve, com muita propriedade, trechos que seguidamente traduzo:

  Como o leitor desde logo verificará, lendo a aventura passional de cada uma das cinco heroínas, ser-nos-ia impossível compará-las a qualquer qualquer ichidai onna (mulher libidinosa) e nelas encontrar escravas de exigente sensualidade. Em cada uma daquelas mulheres achamos, sim, um amor sincero, cheio de sentimento e de devoção exclusiva ao amante, conformemente aos costumes quotidianos das gentes do povo e sem relação com o mundo singular dos bairros de prazer. Pelo seu carácter, esta obra se afasta, portanto, dos outros koshoku mono (contos eróticos ou lascivos). Consequentemente, e apesar do seu título incluir o termo koshoku, indicador de um género, pareceu-nos difícil dar-lhe aqui o seu sentido próprio, se traduzíssemos por «Cinco mulheres Libidinosas» ou "Cinco mulheres Voluptuosas». As três jovens, tal como as duas mulheres adúlteras são, na verdade, «enamoradas». Por isso optámos pelo título «Cinco Enamoradas». 

   Pela sua orientação realista - e moralizadora - a obra de Ihara Saikaku deve ser lida no contexto da vida social e dos códigos éticos da era Edo ou Tokugawa (séculos XVII e XVIII mais 3/4 do XIX. Assim, a prostituição era uma profissão feminina devidamente regulamentada e confinada em distritos ou bairros delimitados para o efeito. Exercia-se em lupanares e outros estabelecimentos de natureza "relaxante" (banhos públicos, restauração e bebidas, albergues, etc.), muitas vezes não legalizados, mas relativamente tolerados. Na verdade, sobre ela não recaía qualquer condenação moral, pelo que os seus clientes eram, indiferentemente, homens solteiros ou casados, podendo as suas profissionais, sobretudo as cortesãs mais qualificadas, proceder de classes sociais relativamente elevadas.

   Completamente diferente era a situação da mulher casada, quase sempre por arranjos entre famílias que recorriam, ou não, aos préstimos de amigos ou conhecidos, bem como de alcoviteiras. Curioso exemplo é o de famílias sem filho varão que, pela continuidade do nome e da casa, adotavam o genro como filho próprio. Em tudo a noiva e mulher legítima se devia sujeitar ao marido e ser-lhe fiel Já alhures referi que, em japonês, se fala da mulher de outrem chamando-a de okusan, mas da própria se diz kanai, isto é, a que está dentro, a de casa. Pelo seu lado, os maridos daqueles tempos de antanho podiam manter, mesmo na sua própria casa, amantes ou concubinas. Assim, facilmente se compreende que tais uniões matrimoniais eram muitas vezes desprovidas de afeto mútuo e podiam conduzir ao adultério feminino.

   Como também facilmente se depreende que a força do conceito de ie (casa e família, ou casa de família) obrigava ao banimento de qualquer união livre do consenso das famílias e dos arranjos a ela conducentes. Os namorados que tal regra infringissem eram imediatamente contrariados, perseguidos e duramente castigados. Assim se pensava proteger e manter o nome e o património da casa e da família.

   Saikaku formulou frequentemente reivindicações de justiça e paridade de direitos das mulheres. Para terminar esta página, traduzo o dito que o nosso autor põe na boca de uma jovem, filha de um fidalgo militar e que fugira com o namorado, tendo então ambos sido apanhados, decapitado o moço, presa a filha num quarto da casa paterna por se recusar a suicidar, desse modo reparando a própria falta e o bom nome da família. A narrativa escrita por Saikaku encontra-se nos Contos das Províncias (Shokoku banashi), publicados um ano antes de Gonin-onna:

   «Se me recuso a obedecer não é por receio de morrer, mas porque não quero morrer por não ter cometido qualquer delito imoral. Entre os humanos, é normal que a mulher apenas possua um homem. O que deve ser classificado de delito imoral é uma mulher que, tendo um marido, ama outro homem, ou que, separada do marido pela morte, se volte a casar. Não podemos acusar de delito imoral uma mulher que durante toda a vida sse consagra a um só homem. Além disso, já aconteceu uma mulher ter elevado a condição dum inferior, casando com ele. Em nada, pois, ofendi a moral! E este homem não devia ter sido condenado à morte!»

   O que no conto da Saikaku se passa a seguir é a jovem cortar o cabelo, tornar-se bonza para prestar ao defunto o devido culto mortuário. O título desse conto é lindo: O leque oferecido em segredo, e que levava escrito um longo poema...

 

Camilo Martins de Oliveira