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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ET VERITAS LIBERABIT NOS…

 

Minha Princesa de mim:

 

Nas notas redigidas em 1039, aqui em Kyoto, por Fujiwara no Sukefusa, chefe da chancelaria privada do imperador, deparamos com mortes e lutos, bem como com o interdito shinto de contacto ou aproximação dos cadáveres, por deles poder advir uma poluição contagiosa. Estamos em plena era Heian, quando se desenvolve o sincretismo shinto-budista. Neste cadinho se misturará esse interdito shintoista com o ensinamento budista que proíbe a matança de animais. Assim, açougueiros, talhantes, curtidores e todos os artesãos que trabalhassem despojos animais eram marcados pela impureza do contacto, tornando-se intocáveis. Daí vêm os burakumin, que serão hoje sensivelmente 2% da população nipónica. Etnicamente indiferenciáveis dos outros japoneses, tampouco o são pelo nome ou apelido. Mas durante um milénio se foram mantendo registos da sua origem e procurados indícios dela na genealogia de candidatos a empregos ou a casamentos. Confirmada a origem, empresas e famílias afastavam os pretendentes e, muitas vezes, os despediam ou deles se divorciavam, em casos de verificação posterior. Contra este interdito de facto, pouco conseguiram leis e regulamentos desde a era Meiji aos nossos dias. As sociedades que se sujeitaram a uma estrutura de castas  -  lembra-te dos párias na Índia  -   dificilmente dela se libertarão. O interdito, ou tabu, como marca do impuro, tem muita força. A palavra tabu é de origem polinésia e diz-se que nos chegou pelo capitão de marinha Cook, que a refere em 1771. Significaria, pelos seus dois componentes ta (marcar) e bu ou pu (com força), algo intensamente marcado. Diz Moerenhout : o tabu era uma lei, uma ordenação ou um édito do sumo sacerdote, que determinava se tal ou tal objecto era sagrado ou interdito. Tanto podia ser a proibição de tocar em tais árvores, em tais frutos, em peixe, etc., como poderia pretender iniciar  -  ou mesmo fazer participar  -  na natureza dos deuses, esses mesmos objetos e sobretudo certas pessoas que assim ganhavam respeito e veneração. Afinal, dirás tu, tudo poderá ser simultaneamente puro e impuro, conforme for situado na esfera do sagrado ou do profano. O fruto da árvore do conhecimento era sagrado e intocável, a transgressão movida pela serpente arrastou imediatamente o castigo que começa por revelar-se na profanação do olhar de Adão e Eva. Mas os tabus mais comuns referem-se fundamentalmente a interditos tocantes à alimentação, às excreções corporais e à sexualidade. Curiosamente, nas três religiões monoteístas do Livro, os interditos afirmados (ou "marcados com força") no Levítico e outros cânones do Antigo Testamento vigoram hoje sobretudo no seio do judaísmo mais ortodoxo e, alguns deles, sobretudo na alimentação, no islamismo. O cristianismo, seguindo o ensinamento de Jesus de que impuro é o que sai do homem (pensamentos, palavras, atos), foi abolindo as proibições canónicas ou rituais, permitindo assim a aculturação do Evangelho a todos os povos e a tradições diversas: a boa nova de Cristo Redentor chama igualmente o escravo e o homem livre, e o cristão será romano com os romanos, grego com os gregos... Não é o cumprimento ritual ou canónico de práticas religiosas que, pela perfeição mágica do seu regulamento respeitosamente executado, adquire o bem ou a salvação: esta foi para sempre oferecida pelo sacrifício de Cristo aos corações humanos que sinceramente se convertem. Vocação universal, dirige-se a todos e a cada um. Cristo é o novo Adão, no sentido de propor à humanidade maculada pelo pecado do primeiro homem o resgate que cada qual quiser aceitar. Todavia, a tentação jurídico-canónica do Tabú também no cristianismo foi encontrando oportunidades de insinuação e permanência, muito embora se procurassem outras justificações: ao celibato eclesiástico ou ao afastamento das mulheres das ordens sacras não é estranho o interdito levítico que se refere a uma impureza congénita da mulher, tal como outras disposições canónicas atentes à prática de jejuns e abstinências são familiares das antigas normas dos períodos de purificação, etc. O próprio descanso dominical  -  apesar de Jesus se ter afirmado Senhor do Sábado  - conheceu épocas de interpretação rigorista, ao jeito de um tabu hebraico... Como cristão, afirmo o meu credo: "creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos Santos, na Remissão dos Pecados"... não me lembro de alguma vez ter proclamado acreditar no Pecado. Acredito, sim, na Remissão, na Ressurreição da Carne, na Vida Eterna, Amen! O gosto sistemático da culpabilização e, sobretudo, essa ideia de uma culpa anterior a nós, que se afirma, por uma interpretação da Epístola aos Romanos feita por Santo Agostinho, terá quiçá mais a ver com o maniqueísmo donde veio o Bispo de Hipona, do que com a presença de Deus na comunhão dos santos. Ao tal pecado original o mesmo Agostinho chamará Felix culpa! que nos mereceste tal Redentor... Mas o pecado é, afinal, uma condição muito mais colectiva no judaísmo e no islamismo, já mais pessoal no cristianismo. Penso que os ritos purificadores judeus, e islâmicos, têm muito a ver com a salvaguarda de uma cultura etno-religiosa, não vá o povo ofender o Deus da sua aliança por não cumprir  -  ou permitir que no seu seio não se cumpram  -  as obrigações contratadas ou contraídas. O pecado de qualquer um(a) é, antes de mais, uma traição à comunidade de fé a que se pertence. O crente é o que se submete à vontade de Deus,expressa na aliança que Ele fez com o seu povo e registada nos livros da revelação que,no caso do Corão,é um ditado divino feito em língua árabe (que aí é a língua de Alá,do próprio Deus) ao profeta Maomé. Mesmo numa comunidade tão ilustre,científica e artisticamente,como a dos judeus sefarditas, lusitanos, de Amsterdão, no século XVII, Baruch Spinoza será excomungado, tal como, séculos depois, Salman Rushdie será objeto de uma fatwa. Ou serão apedrejadas até à morte mulheres adúlteras, ou simplesmente degoladas por irmãos de sangue as que se quiseram unir a homens de outra etnia, religião ou condição social. A vigilância sobre o "pecado", a insistência feroz no cumprimento de certas normas de conduta, sem condescendência para com as diversidades culturais,nem tempos e modos diferentes  - essa atitude que hoje se apelida de fundamentalista  -  tem sobretudo como motivo a fobia étnico-cultural, ou sectária , da heresia ou do separatismo. A Inquisição católica também assim surge e se explica. Todavia, foi ela, sim, um desvio da mensagem de abraço universal do cristianismo. Como o foram, são e serão sempre, as atitudes, práticas e prédicas que pretendam ser possuidoras privilegiadas da verdade, e por isso escutam pouco ou nada e querem impor tudo ou muito. Princesa, minha não,  mas de mim sempre, há mais verdade do que subtileza nesta distinção. No silêncio de um jardim zen, na quietude de um despojamento de formas que me leva a contemplar o mundo como enigma, a inspiração de uma cultura diferente da minha põe-me em comunhão, profunda e sentida, com a Igreja em que fui nado e criado. E nela escuto essa voz antiquíssima e íntima,vinda de tão longe e sempre tão dentro do nosso coração,que nos vai dizendo: Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho muito amado. O Deus-connosco vence a morte e assim apaga as marcas fortes de qualquer tabú. Dou-te a mão
                             

                        Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira