EVOCAÇÃO DE MARIA GERMANA TÂNGER
A morte de Maria Germana Tânger ocorrida recentemente, motiva esta evocação de uma amizade que sobretudo decorria primeiro do convívio direto e prolongado, e depois de uma admiração incondicional pelo talento, pela inteligência e pela carreira criativa que, ao longo de dezenas de anos me foi dado acompanhar. Muito me honra aliás termos sido contemporâneos na docência do Conservatório Nacional, depois Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa: esse convívio foi para mim determinante tanto no aspeto da docência e da cultura, como sobretudo na amizade.
Mas mais do que isso, tive também oportunidade de colaborar em publicações e em intervenções que completavam a formação artística e cultural, tantas e tantas vezes como espetador nos espetáculos que Maia Germana dirigia ou participava: representaram um enriquecimento cultural e artístico de que muito beneficiei – e de cuja memória continuo a beneficiar.
Recordo aqui um livro evocativo, denominado “Conservatório Nacional 150 Anos de Ensino do Teatro” reunindo conferências na Escola Superior de Teatro e Cinema” (1988) em que tive o gosto de colaborar e onde Maria Germana escreveu um texto exemplar no conteúdo e na qualidade. “Teatro, Veículo da Língua” se denomina esse texto, onde, a partir de uma citação de Miguel Torga, Maria Germana define uma “teoria geral” da estética e da substância da comunicação artística nas suas dimensões complementares de expressão cultural e social, a partir do teatro mas extensiva a todas as manifestações.
“Palavra-Teatro. É este o tema que gostaria de saber desenvolver” diz-nos logo de início: e é caso então para questionar quem até hoje aí haverá que saiba melhor desenvolver...
Desde logo nos aspetos da própria expressão técnico-dramática do espetáculo teatral: “Quantas vezes vamos ao Teatro e nos aparece um ator com a voz bem colocada, boa expressão, ótimo jogo dramático, e nós, na plateia, tentamos adivinhar o texto, porque enrola as sílabas, tem consoantes pouco nítidas, ausência das vogais, etc. Julgo que isto tem acontecido a todos que frequentam assiduamente o Teatro”.
Isto era em 1988...mas e hoje?
Maria Germana Tânger cita amplamente autores, desde Gil Vicente, Camões António Ferreira, António Vieira, Garrett, António Patrício, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Hernâni Cidade, Almada, Maria de Lourdes Martins, Jolly Braga Santos, Ary dos Santos e outros. E espraia-se em aspetos críticos relativamente à chamada arte de dizer, declamação e recitação:
“Os meus alunos todos sabem que essas duas palavras – recitação e declamação – e tudo o que elas envolvem são o maior erro para a interpretação, seja da prosa ou da poesia”.
E a recomendação didática mas sobretudo de análise crítica:
“Dizer é comunicar a palavra sem efeitos nem falsas emoções. Humildade, respeito e sinceridade é o que se pede ao ator – enquanto a palavra for importante”.
E no final, como síntese:
"Que o teatro que é o espelho da cultura de um Povo saiba transmitir a inteligência e o poder da Língua Portuguesa".
Ora, tal como escreveu Guilherme D’Oliveira Martins por ocasião da morte de Maria Germana Tânger, “o método que usava era simples, mas permitia compreender a diferença entre o declamar (que não praticava) e o dizer, que foi o seu trabalho de sempre. Começava pela descontração, e continuava pela respiração, pela articulação, pelo conhecimento do corpo e pela máscara. Os seus alunos e os amigos (e os primeiros rapidamente entravam para o grupo dos segundos) sabiam-no bem por experiência e entusiasmo. O fundamental era saber dizer, o que pressupunha compreender e transmitir o que o poeta escreveu e o que o leitor sentia. Em quase cem anos de vida, Maria Germana Tânger viveu intensamente”... (in Jornal de Letras – 14 a 27 de fevereiro de 2018).
DUARTE IVO CRUZ