FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO
14. CHA-NO-YU (I)
Cha-no-yu é a cerimónia do chá. Cha-no-yu-sha a pessoa que a executa e serve. Cha-no-yu-zashiki a sala ou casa para a cerimónia do chá. Cha-no-yu-dogu são os utensílios e recipientes da cerimónia do chá. Tudo isto nos ensina já o padre jesuíta João Rodrigues - o Tçuzu ou intérprete, esse português de Sernancelhe que veio muito moço para o Japão (onde professou) e confessava que talvez fosse o seu japonês melhor do que o português - na sua História da Igreja de Japão que, escrita no primeiro quartel do sec. XVII, cobre a segunda metade do XVI. Serviu durante décadas como intérprete da corte e do shogun japonês, função em que foi definitivamente substituído por William Adams - o primeiro inglês a desembarcar no Japão - em 1610, aquando da expulsão dos jesuítas. Mas ter-se-á encontrado com o angloprotestante Adams, e tido com este debates teológicos que em ambos provocaram estima e admiração mútuas... Seja como for, certo é que, hoje ainda, os capítulos 32 a 35 da sua História não só são traduzidos em várias línguas europeias, como largamente utilizados por estudiosos e curiosos das coisas do chá no Japão. É interessante observar também que a palavra cha provém de idêntico fonema chinês, de Nanquim (ou capital do sul, por oposição a Beijim, ou capital do norte) e da província de Fukien, onde também fomos buscar a pronúncia de Japão, como vimos. No mandarim, chinês do norte, língua oficial, diz-se tê. E deste vieram as designações usadas em todas as línguas europeias, do castelhano ao alemão, do francês ao inglês. Salvo erro, só em russo e em português se diz chá. Voltaremos ao nosso Tçuzu e, com ele, ao Ginkakuji (pavilhão de prata), seu jardim e casa de cerimónia do chá. Encontraremos Sen-no-Rikyu, o mestre do chá que Luís Froes e João Rodrigues conheceram, e que adaptou àquela cerimónia gestos da liturgia católica. Regressaremos ao Byodo-in, situado em Uji, que, diz-nos Wenceslau de Moraes -- e, quatrocentos anos antes dele, já o notava o padre João Rodrigues -- é a região onde melhor chá se cultiva. Por Wenceslau chegaremos a outro relance do culto do chá, este sentido por um português no sec.XX, mais popular pelo sentimento, mais feminino pela graça das mulheres japonesas. Não exactamente igual ao das cerimónias rituais tradicionais, essas que se realizavam em casas ou salas construídas para o efeito, com portas estreitas e baixas, de modo a impedir a entrada de vestuário e acessórios excessivos e das armas que os samurai às costas carregavam... Mas também a esta, e com graça, Moraes se refere: No tempo do generalíssimo do Império, chamado Toyitomi Hideyoshi, mais conhecido na história palo grande Taiko-sama, quase todos os generais eram chajin, isto é, ferventes apaixonados da ceimónia do cha-no-yu... ... Relembrando o passado, justamente num período de efeverescências guerreiras culminantes no Japão, talvez pareça estranho, talvez pareça cómico, que esses rudes heróis de tão grandes façanhas, os indomáveis veteranos das guerras na China e na Coreia, despissem armaduras, tirassem os dois sabres da cintura, para virem votar horas quiméricas a aquecer a água sobre brasas e a preparar o chá... Mas o contraste, por si, explica o facto: era precisamente essa dura existência de batalhas e de lances sangrentos, de inclemências de vida nómada, de longo cogitar em estratagemas e em argúcias, que impunha aos homens dirigentes a doce trégua do cha-no-yu. O convívio com os partidários e os amigos, o desfilar do povo alegre e reverente, a verde paisagem de repoiso, a solenidade hipnótica dos gestos, tudo contribuía para oferecer um curto aprazimento àquela gente, que assim ia apagando da memória os amargores sofridos, estreitando simpatias,retemperando forças para as próximas lutas...
... ... Não me peçam agora, a mim, profano na matéria e viageiro fatigado de tão multíplices impressões que tenho vindo colhendo por esse mundo fóra, uma opinião pessoal sobre o cha-no-yu. Estive uma vez,é certo, com dois ou três amigos, numa das cha-ya de mais fama da cidade de Kobe; e Tama-Guiku (O Malmequer Precioso) era a esplêndida sacerdotisa da cerimónia. A impressão que daquela noite guardo é indefinida, fugidia, como a de um vago sonho que tivesse. Ficaram-me reminiscências indecisas do luxo sóbrio e harmonioso e do asseio extremo das coisas impregnadas de exotismo onde pousou o meu olhar. Na meia luz do plácido aposento, amplo e silencioso como um templo, contornava-se, distante, um vulto de mulher, de joelhos, envolta em sedas magníficas .As atenções fixavam-se especialmente, como que por atracção hipnótica, nas suas mãos finíssimas, alvejando no espaço como se fossem de marfim, tomando de estranhos utensílios, preparando não sei que filtro de magia, poisando em mímicas hieráticas, quais mãos de mística oficiante de uma religião desconhecida. Por fim, convidado a partilhar no sacrifício, aceitava uma taça com chá que me era oferecida e levava-a aos lábios comovido, com não sei que súbitos escrúpulos de apóstata mal firme... «O Culto do Chá» foi pela primeira vez publicado em Kobe, em 1905. Para além do sentimento poético de Wenceslau, enfeitiçado pela graça delicada das mulheres japonesas (ou da Mulher Japonesa?), o livro contém informações pertinentes à história e cultura do chá, muitas delas, aliás, correspondentes às dadas pelo Tçuzu na sua História, obra que Moraes certamente não leu. Pessoalmente, a única publicação dela que conheço, em português, foi dada à estampa em Macau, nos anos de 1954-55, por J. Abranches Pinto. A edição mais divulgada -- tanto quanto eu saiba -- é a versão inglesa do padre Michael Cooper, com um título que este foi buscar a William Adams: This Island of Japon. Os capítulos referentes ao chá encontram-se traduzidos em castelhano por J.L.Alvarez-Taladriz (Arte del Cha, Tokyo, 1954). Adiante iremos visitar essa obra do século XVII. Voltemos agora ao nosso Wenceslau: Pouco depois, ainda mais outro bonzo (sempre os bonzos!), de nome Mioyé, colhendo de Eisei os vários segredos de cultura, novas sementes adquiriu, e em Toga-no-o e em Uji, lugares vizinhos de Kyoto, atentamente se entreteve em cultivar o chá; em Uji, de preferência, foram os resultados excelentes. Dois séculos depois, cerca de 1400, o shogun (generalíssimo) Asikawa (era Ashikaga) Yoshimitsu imprimiu vigoroso impulso às plantações de Uji, as quais tanto foram prosperando, mercê da riqueza do torrão, que de então até hoje o chá daquele sítio tem sido celebrado como o melhor de todo o Império; dele exclusivamente se serve o Imperador.
Moraes tece várias e acertadas considerações sobre a cultura do chá e seus cuidados, e ainda nos leva, nos primeiros dias de Maio, quando as plantas começam a vicejar e se colhem as primícias, aré Uji: Depois segue-se o rio, de águas límpidas e frescas, rico de tradições de glória; galga-se a ponte em arco, entra-se no bairro das cha-yas, dos hotéis, em tal quadra povoados de fregueses galhofeiros e de gentis mulheres, as gueishas, que cantam ou dedilham no inseparável shamisen; e vêem depois os campos, vastos campos de chá a sucederem-se pelo horizonte fora, cuidados como jardins, em longos alinhamentos de arbustos, copados, arredondados, lembrando enormes manjericos, de delicada rama de um verde escuro bronzeado; no azul distante, alguns famosos templos confusamente se recortam. As moças de Uji estreiam kimonos novos para o caso, arregaçando as mangas com fitas escarlates; amarram em turbante em volta dos cabelos toalhas de cor azul e branca; e assim, esbeltas, graciosíssimas, em ranchos de dez, de doze companheiras, dirigem-se ao trabalho. É então um encanto para os olhos ir a gente surpreendê-las no afã do seu mister, dispersas pelas campinas fora, como borboletas; indo de um ramo a outro ramo, de um arbusto a outro arbusto, por vezes ocultando-se entre o verde mais denso da folhagem. Os dedos róseoa, miudinhos, a escorrerem de orvalho e multiplicando-se em gestos delicados, vão colhendo os rebentos tenros do chá e atirando-os a grandes ceiras dispostas pelo chão; as bocas vão sorrindo, patenteando as enfiadas alvas dos dentinhos; os olhos esbrazeam em juvenis amores inconfessados; as vozes unem-se às vozes, em ritmos comoventes de velhas canções locais... O nosso grupo participou numa cerimónia do chá em Kyoto, na varanda sobre jardim de um templo. Deu para apreciar o rigor do ritual até ao ínfimo gesto, provar o matcha e os bolinhos de feijão doce. Aquela em que Wenceslau de Moraes esteve também não terá sido -- a julgar pela narrativa acima transcrita -- momento de comunhão na espiritualidade da cha-no-yu, nem de sentimento da sua solenidade. Compreenderemos melhor quando seguirmos o guia João Rodrigues. Em Uji estivémos no outono, não vimos a rebentação do chá. Mas recolhemo-nos no Byodo-in. Como, já antes, estivéramos no Ginkakuji, edificado pelo shogun Ashikaga Yoshimitsu, e aí vimos o jardim do chá, em que estreito caminho nos conduz à casa da cha-no-yu... O Byodo-in, dedicado ao Buda Amida, é um templo construído, em 1052-53, pelos sessenta anos de Fujiwara Yorimitsu, que assim transformou em lugar de culto a residência de Verão e lazer que herdara de seu pai, que foi regente do Império, e o mais poderoso representante dessa família com tantos laços de sangue com a família imperial, Fujiwara Michinaga, na margem do rio Uji. Nessa região, um século e meio depois, iria o monge Eisei lançar as sementes de chá que trouxera da China, onde estagiara em mosteiros budistas, e que estão na origem do que no Japão se chama honcha, isto é verdadeiro chá, original. O mesmo Eisei iniciou no Japão a prática budista chinesa de ritualmente preparar e servir chá verde em pó, dando assim origem ao que mais tarde se divulgaria como cha-no-yu. Tal prática foi aperfeiçoada, já no século XV, no Ginkakuji, residência de recreio do shogun Ashikaga Yoshimasa, que este transformou em templo de Amida e dotou com um jardim e casa cerimonial de chá. Adiante veremos o que dele nos conta o Tçuzu.
Camilo Martins de Oliveira