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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO

 


Biombo no Museu Namban Bunka-kan, em Osaka

 

16. NAMBAN-BYOBU 

 

Num dos mais pequenos museus do mundo se encontra uma das melhores colecções de biombos dos portugueses ou biombos namban. Tem pouca publicidade, é mal conhecido, refugia-se numa ruazinha ignorada e perdida na cidade de Osaka. Chama-se Namban Bunka Bijutsu-kan ou simplesmente Namban Bunka-kan, Museu da Cultura Namban... É propriedade de estimação da família Kitamura, que há várias gerações colecciona com carinho memorabilia dos portugueses e do cristianismo no Japão. As obras de arte e as lembranças nele encerradas e expostas variam muito em estilo, materiais, qualidade e valor. Mas todas foram recolhidas pela mesma saudade, e os biombos são notabilíssimos. Visitámo-los, depois de se ter pedido à família Kitamura que nos abrisse as portas daquela sua casa. Valeu a pena. Dos biombos namban do sec.XVI-XVII, pintados na era Momoyama e no início do período Edo, existem ainda centenas de exemplares por esse mundo fora. Também terão sido destruídos bastantes, em momentos mais duros da perseguição aos cristãos, ou em muitos deles se apagaram ou rasparam imagens explícitas do cristianismo, como as cruzes que assinalavam as igrejas. Outros muitos terão sido vítimas de incêndios e outros acidentes naturais ou por mão humana. Mas, a julgar pela sobrevivência, os namban foram certamente motivo querido e popular entre os japoneses daqueles tempos... E creio que não há, no decurso da história da arte nipónica, muito mais exemplos de tanta representação de estrangeiros;  pela conhecida herança cultural, se imaginaram, desde o sec. VII,  monges, sábios e temas chineses, e, depois da abertura do Japão, em finais do sec.XIX, as gravuras de Kobe e Yokohama apresentam figuras e cenas da vida dos gaijin (gente de fora ) estabelecidos naquelas duas cidades portuárias.Mas, aparecidos num período de ouro das artes nipónicas, os bárbaros do sul ganharam visibilidade e esplendor, estiveram muito tempo na moda... Adiante observaremos em pormenor alguns biombos namban, mas será útil falar um pouco deles na generalidade. Nas casas tradicionais japonesas mais modestas, o piso térreo era um espaço único rodeando a lareira, servindo de cozinha e local de convívio. No piso acima se dispunham os quartos de dormir, espaços reduzidos, onde para o efeito se estendiam os futon, espécie de saco-cama. Subia-se por estreita escada interior, muitas vezes um kaidan-tansu ou armário em degraus ( e tenho um em casa, que não serve de escada, mas de expositor de cerâmicas; o príncipe Takamado, primo direito do Imperador, disse-me um dia que me invejava essa utilidade, posto que ele, japonês sendo, nunca poderia dar-lhe tal destino...). E é certo que as residências nobres, ainda que igualmente construídas em madeira, dispunham de muito mais espaço que, para o ar livre  - sobretudo para cuidados jardins interiores, que também são circunstância de meditação  --  se abria por varandas que serviam de corredor externo. O espaço interior era dividido por paredes (hekiga), portas ou divisórias deslizantes (fusuma) ou ainda por painéis desdobráveis e móveis a contento, com duas, três, quatro, seis ou oito folhas, que se sustinham sem precisarem de outro apoio: os biombos (byobu). Todas estas divisórias podiam ser decoradas ou pintadas: os motivos inicialmente presentes eram chineses, muitos pintados a tinta preta,  e mostrando cenas da natureza, geralmente montanhas, ou figuras de notáveis taoístas e confucionistas, tal como de monges e temas budistas. Mas a pouco e pouco se foi impondo o estilo japonês, a pintura chamada Yamato-e, reproduzindo panoramas célebres no Japão, cenas da vida das gentes, e animais e plantas, sobretudo esplêndidos arranjos florais. Aplicava-se esta de preferência nas fusuma e nos byobu. Conforme o número de folhas, estes poderiam ter entre um e cinco metros de comprimento (ou largura), sendo que a altura variava entre um e um metro e oitenta. Por regra, eram produzidos aos pares, por semelhança ou contraste de temas ou por continuidade narrativa. Assim, no caso dos biombos namban, um par representaria, num biombo, a despedida e partida da nau do trato de Macau e, no outro, a chegada e desembarque no Japão. Ou poderia ser este o tema do primeiro biombo, representando então, o segundo, a procissão para a vila e o encontro com missionários e população local... São exemplos. Olhemos mais atentamente para alguns daqueles que vimos. No Namban Bunka-kan, um par de magníficos biombos, cuja pintura é atribuída a discípulos de Mitsunobu, da escola e família Kano, mostra-nos, no primeiro, o colorido e a ordenada agitação da chegada e desembarque da nau, desde o marujo que, à popa, sonda a profundidade das águas costeiras aos que se afainam nos mastros e gáveas, no arriar das velas. ou procedem, cada um em sua função, ao descarregamento de múltiplas mercadorias que um bote vai levando para terra firme. Nobres, oficiais e servos  -- muitos de pele escura, como aquele que, já no segundo biombo, o da procissão, segura o guarda-sol que protege o capitão geral ao encontro dos missionários e outros notáveis que lhe apresentam saudações de boas-vindas  --  vão seguindo da nau para terra, e aqui se misturam com os locais, desde as senhoras cuja curiosidade espreita por detrás dos noren das lojas abertas, aos que saíram à rua para observarem de perto os fabulosos bárbaros do sul. Não faltam cadeiras desdobráveis, nem quem as transporte. Há fidalgos que nelas se sentam, enquanto as respectivas montadas, ricamente ajaezadas, são seguras, ou conduzidas a pé, por um criado.  Por detrás das cenas de rua, surge, numa encosta, uma igreja jesuíta, onde se celebra uma missa e se ajoelham portugueses e japoneses. Em espaço contíguo, um padre ouve um samurai em confissão. Mais adiante, um irmão vem servir chá a outro padre que, com um leigo, verifica a versão japonesa de um catecismo: segura,um, o original latino e, o outro, a tradução em vernáculo. Já no Museu Municipal da Cidade de Kobe, deparámos com outro par de biombos, em que um representa a partida da nau e a despedida de Macau, e o outro o desembarque e procissão em Nagasaki. À largada de Macau, a nau leva as velas içadas e enfunadas de vento, enquanto, em terra, galopam fidalgos a dizer adeus, e outros agitam mãos e lenços. Um edifício, de rico aspecto e imaginária arquitectura, testemunha que o navio partiu de terra desconhecida do pintor. Mas este terá o cuidado de mostrar a mesma nave, mas já de velas arriadas e amarradas, lançando a âncora, acostando ao Japão. Aqui tudo se pintou conforme à observação directa. E, em solo nipónico, surgem muitos japoneses com rosários à cintura, ou recitando-os. Outros carregam ferramentas e alfaias dos seus ofícios e as lojas mostram-nos os seus artigos: tecidos, porcelanas, vidros, peles de animais... E, numa cena de missa, apanha-se o momento da consagração da sagrada eucaristia. Tudo com rigor, paramentos, altar, gestos do celebrante e atitudes dos presentes.  Lembra-me uma página do padre Gaspar Vilela, que regista, mais ou menos, assim:  ...levaram-me a ver uma das suas casas, que estava decorada com byobu ou pinturas da altura de um homem. Cada uma delas era feita de quatro painéis que se dobravam num só ao fechar. Eram feitos de madeira coberta de papel, sobre o qual eram feitas as pinturas; e quando esses byobu eram levantados e montados, cobriam as paredes, tal como as tapeçarias gobelin são usadas na Europa. Estes byobu têm molduras douradas, e, pintadas neles, várias coisas, tal como flores e os produtos de cada uma das estações do Verão, Inverno e Outono, e ainda pássaros, caça, flores, árvores e outras coisas que surgem nessas épocas. São pintadas com tanto realismo, que ao espectador parecia estar olhando para a coisa real, que assim fora retratada; na verdade, num desses byobu, estava pintada tão naturalmente uma neve cobrindo bambus, que sem dúvida alguma parecia tão real como a neve que cai na sua estação própria...  No museu de Kobe, também nos foi dado ver um leque pintado por Kano Motohide, e mostrando a Namban-ji (igreja namban) de Nossa Senhora da Assunção, erigida em Kyoto em 1576, de que apenas resta um sino de bronze, com uns 60cm de altura, guardado por monges budistas no templo e mosteiro de  Myoshinji, perto de cujo portão meridional também se conserva o mais antigo sino budista do Japão, ainda existente e sonoro, fundido em 698, que também visitámos. No Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, encontra-se um par de magníficos biombos, da "família narrativa" (partida-chegada) do de Kobe. O olhar atento e ecuménico torna, muitas vezes, o estrangeiro próximo.

   
Camilo Martins de Oliveira