I DANIEL BLAKE, Digo: NÓS DANIEL BLAKE
Afinal depois da usurpação do viver em dignidade, depois do oxigénio em que se movimenta plenamente a violência, a máquina corrompida, robotizada, automática, insensível, que atua em nome de uma igualdade de tratamento entre os homens, depois de tudo ser nivelado ao subsolo, local de uniformizações abjectas, implacáveis, resta o Estado, essa conquista de duração mais vasta do que a existência efémera do homem.
Se restassem dúvidas, neste filme de Ken Loach é claro o remeter da individualidade sempre para mais tarde. Há que permitir que o Estado tenha também a função de permutador entre projetos e mortalidade: algo sem origem nem fim. A verdade é que a denúncia é ineficaz ao nível do que se permite à sua força, e entende-se mesmo que ela se deve encaixar nos moldes pré-estabelecidos, nos próprios formulários e demais burocracia, sendo proibida nos c.v. caso explicite alguma objetividade subjetiva, e, pouco muito pouco é moralmente duvidoso.
O último recurso reside num grito não escutado nunca pois as celebrações dos heróis destes tempos fazem-se em hora sem tráfego humano ou outro. A autoridade de quem pode é uma tradição que torna cega qualquer legitima soberania.
A ancianidade do saber, do sentir, do compreender, do lutar e do sofrer é progressivamente eliminada ou reduzida a um mínimo que nunca coloque em causa a insanidade do mando. O laço horizontal da justiça fracionou-se e a experiência da pátria de si mesmo e da terra a que se pertence, foi quebrando o compromisso com a vida digna.
Se existisse um filme a ver este e outros natais, seguramente que se deveria repetir esta lucida perturbação “I Daniel Blake” ou não existisse o nós, o nós que constrói as prateleiras para os livros, com a fome a apertar o estômago e a dizer que só se a origem do sonho fugir sempre para trás não haverá esperança, ou se entre um começo datado e o amor-próprio encontrado, apenas a morte se tornar discípula de uma estranha dimensão que mora na rua da ausência no país da indiferença.
E nós, nós andamos de um lado para o outro ou a nossa sombra anda dum lado para o outro? Como pode um homem esperar que tudo aconteça antes de ter tempo? E então se ainda não fizemos o máximo para toda esta realidade mudar, digo, nós somos, eu sou é.
À altura da nossa alma, afinal uma couraça é ritualmente regada.
Teresa Bracinha Vieira
25.12.17