MÁRIO DE SÁ CARNEIRO COMO DRAMATURGO E DOUTRINADOR DE TEATRO
Sem querer, de modo algum, transformar esta série de artigos exclusivamente numa evocação histórico-dramatúrgica em datas referenciais, não deixamos de referir os 130 anos do nascimento de Mário de Sá Carneiro (1890-1916), tendo em vista por um lado a indiscutível relevância do autor como tal e, por outro lado, a qualidade das peças que até nós chegaram. Em sucessivos artigos e em livros, tivemos ensejo de analisar a sua dramaturgia, mas importa agora e aqui referir outras abordagens e análises vindas aliás de autores de grande relevância e independência cultural e política, o que merece destaque.
Isto, porque em si mesmo Sá Carneiro amplamente justifica toda a projeção poética e literária que efetivamente lhe é reconhecida: mas a sua obra não se concretizou especialmente na literatura dramática. E mais: das peças que escreveu, apenas duas chegaram na íntegra até hoje e ainda por cima, em ambas, Sá Carneiro foi coautor com outo parceiro.
Referimo-nos a “Amizade”, escrita com Tomaz Cabreira Junior e “Alma”, escrita com Ponce de Leão.
Nem as peças nem os co-autores deixaram marcas assinaláveis na cultura teatral portuguesa: mas obviamente o mesmo se não diz de Sá Carneiro, não obstante o pouco que é conhecido da sua criatividade dramatúrgica em si mesma. Ficou a memória de peças desaparecidas ou ignoradas, como “O Vencido” (1905), “Gaiato de Lisboa “ (1906), “Feliz pela Infelicidade” (1908), “A Farsa” (1913), “Irmãos” (1913).
Em 1987, Luís Francisco Rebello escreveu um prefácio à edição da “Alma” e citou um texto datado de 1913, onde Sá Carneiro analisa o fenómeno teatral na sua assumida conjugação de texto-espetáculo. Transcrevemos então algumas referências determinantes dessa análise acerca do fenómeno teatral, feitas por Sá Carneiro:
«A obra-prima teatral completa lança mesmo duas arquiteturas: Um exterior, mera armadura, outra interior.
A arquitetura exterior é um arcaboiço material – a carpintaria. Os trabalhos de um Sardou contêm esta arquitetura, mas só esta. Por isso não deixam de ser obras falsas. Não são obras imperfeitas. São obras falsas até à pacotilha máxima.
A arquitetura interior, que é a lama, a garra de ouro, consiste no ambiente que a grande obra dramática – a obra imortal – cria em torno de si: de maneira que nós temos a sensação nítida de que a sua máxima beleza não reside nem nas suas palavras, nem na sua ação (arquitetura exterior) mas em qualquer outra coisa que se não vê: uma grande sombra que se sente e se não vê» (fim de citações de Sá Carneiro; cfr. Luís Francisco Rebello - Prefácio à edição de “Alma” 1987).
No que se refere à “Amizade”, como vimos escrita em colaboração com Tomaz Cabreira Junior, tivemos ocasião de referir aspetos e características literárias que parecem indicar a criatividade de Sá Carneiro: será o caso, como tivemos já ocasião de escrever, do mito de uma Paris brilhante, sede da arte e do pensamento, ou a personagem do pintor Cesário, providencial no apoio a amigos.
Pois como já temos referido, trata-se de uma abordagem ambiental e psicológica que em muitas outras obras de Sá Carneiro assumem a maior relevância... Como também assumiu em tantas e tão variadas criações/intervenção da sua vida e atividade pública e/ou criativa!
E, para terminar esta evocação analítica, citamos David Mourão-Ferreira, que, no grande ensaio intitulado “Hospital das Letras” (Guimarães Editores 1966), escreveu:
«Mais tarde, a poesia de Mário de Sá Carneiro orienta-se predominantemente, como observou Urbano Tavares Rodrigues, “para uma segunda fase confessional e niilista, mais disposta à aceitação do banal, do concreto”. É já o começa da “queda”, a sensação da “desistência” nos “Últimos Poemas”».
David Mourão-Ferreira cita detalhadamente diversas obras de Sá Carneiro. E termina a análise com uma clara e categórica apreciação:
«Já então, na Europa, a psicologia analítica começava a divulgar isto mesmo: que a loucura se “mede” por míticos padrões. O de Sá Carneiro tinha forçosamente de ser “alado”. De qualquer forma, um voo de frustração que no “Quase” ficara definido: “Asa que se enlaçou mas não voou...” Por outas palavras: o mito de Ícaro.”»
DUARTE IVO CRUZ