Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

MEDITAÇÃO JAPONESA

O texto que publicamos foi expressamente escolhido por Camilo Martins de Oliveira, que há pouco nos deixou.
Agradecemos toda a sua generosidade e o seu empenho permanente.  
 

  


A abertura do Japão ao convívio internacional, em meados do séc. XIX e após mais de dois séculos de reclusão imposta pelo shogunato Tokugawa, começou por promover algum comércio e a instalação de pequenas colónias de estrangeiros em Kobe e Yokohama. Mas depressa produziu efeitos de outra ordem de grandeza, quer no tocante à "modernização" tecnológica, económica e social, jurídico-política e administrativa do Japão - que aliás gerou dilemas e crises de identidade cuja "digestão" ainda hoje não está terminada - quer ainda quanto à projeção de representações tradicionais da cultura nipónica sobre o gosto e as artes do ocidente europeu e norte-americano.


Gravuras dos mestres do ukiyo-e, como Hokusai e Hiroshige, quimonos e leques, cerâmicas e lacas, desenho de objetos e arquitetura de edifícios impuseram-se com tal veemência ao gosto europeu, que logo se espalhou uma moda a que, em França, se chamou "japonisme"...


Lembremo-nos da influência daquelas gravuras nos cartazes de Toulouse-Lautrec, da sensualidade e erotismo da "japonaise au bain" de James Tissot e outras cenas de banho do Degas. Sem esquecer a elegância e os cenários nipónicos de tantos quadros do Whistler ou da Mary Cassat, nem o "Portrait du Père Tanguy" do Van Gogh, os guaches de Gauguin sobre papel recortado pele forma de leques japoneses. E há tantos outros motivos nipónicos na pintura de Manet, Pissarro e muitos outros!


Nas artes decorativas, em porcelanas de Worcester, da Minton e da Martin Brothers, em pratas e casquinhas da Christofle e da Tiffanys, em vidros do Daum ou do Gallé. Generalizou-se o uso de biombos e a decoração japonizante de portas, paredes e móveis, e outro jeito de arranjar flores. No vestuário e acessórios, novos padrões de tecidos, quimonos, leques e sombrinhas.


O ocidente de fim de século descobre, mitifica e imita o gosto japonês. Mas que fazem os japoneses coevos? Mandam políticos e samurais, juristas e médicos, engenheiros e artistas plásticos, à Europa e aos EUA, para conhecerem as nossas constituições e o nosso direito, a nossa medicina e os nossos hospitais, os nossos caminhos de ferro, estradas e pontes, as nossas indústrias, os nossos exércitos, as nossas escolas.


Num esforço de emulação do que entendem ser as melhores realizações do génio ocidental, os japoneses da era Meiji erguem fábricas e estaleiros navais, montam um Estado com imperador, parlamento, constituição e organização política e administrativa. Constroem ferrovias, pontes e telégrafos, organizam o serviço militar obrigatório. Abrem universidades, empresas e bancos. Fazem de Ginza, em Tokyo, uma zona de comércio de luxo, com avenidas largas e grandes armazéns, para suplantar o que de semelhante viram em Londres, Paris, Berlim ou New York.


Mas não se pode falar de ocidentalização do Japão, para além da importação, adaptação, assimilação e eventual melhoramento de técnicas sistemas. A alma nipónica recebe e rejeita tudo isso, serve-se do que é instrumentalizável, mas não se converte. A era Meiji formou a matriz do pensamento e das reações japonesas no sec. XX até aos nossos dias. Diz-nos um escritor nosso contemporâneo: "Desde essa época e até hoje, a civilização ocidental, pelos nossos contactos e fricções com ela, foi-nos pródiga em benfeitorias e, simultaneamente, fez-nos sofrer. Mais precisamente, os sofrimentos do Japão - ou talvez mesmo da Ásia - começaram quando os ocidentais se tornaram, aos nossos olhos, mais belos do que os asiáticos. E essa mágoa ou, pelo menos, esse mal estar permanece em mim, que aqui vivo, sem conseguir liquidá-la..."


Não resisto a transcrever um trecho de uma entrevista que Shosaku Endo, escritor católico japonês, há anos deu à revista Kumo:


"Fui batizado em criança, isto é, o meu catolicismo foi um pronto a vestir. Depois, tive de decidir se faria o fato adaptar-se ao meu corpo ou se o deitaria fora, para vestir outro. Muitas vezes senti que queria desfazer-me do meu catolicismo, mas finalmente fui incapaz de o fazer. Não foi só não deitá-lo fora, foi sentir-me incapaz de o deitar fora. A razão disto talvez seja ele ter acabado por se tornar parte de mim. O facto de ter penetrado tão profundamente em mim quando era jovem era um sinal de que, pelo menos em parte, se tornava numa coextensão minha. Mesmo assim, não conseguia desembaraçar-me do sentimento de tratar-se de algo emprestado, e comecei a perguntar-me o que seria o meu "ser eu mesmo"... Penso que isso é o pântano de lama japonês em mim. Desde que comecei a escrever romances até hoje, esta confrontação do meu "ser eu mesmo" católico com o "ser eu mesmo" que lhe está subjacente tem, como refrão repetido por um idiota, ecoado e voltado a ecoar no meu trabalho. Senti que tinha de encontrar maneira de reconciliar ambos." Endo fala de pântano japonês como metáfora de uma condição cultural que suga sentimentos e ideias e dentro de si os transforma.


Qualquer processo de aculturação é necessariamente complexo e demorado. Quando ouço por aí o pregão de receitas de cura socioeconómica e financeira "à americana" lembro-me sempre de um chinês famoso que, há poucos anos atrás, respondeu assim à pergunta sobre quais teriam sido os efeitos da Revolução Francesa de 1789 na China: "Ainda é demasiado cedo para o dizer."

 

Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 16.11.12 neste blogue.