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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MOMENTO CRUCIAL

  
    Karl Jaspers 


Karl Jaspers designou como “momento axial” o terceiro dos períodos em que dividiu a História do Mundo. Decorreu entre 800 a.C. e 200 a.C. e caracterizou-se pelo aparecimento de uma mesma linha de pensamento em três regiões do globo, China, Índia e Ocidente. Afinal, a atualidade é resultado desse momento que corresponde à valorização do espírito humano, envolvendo a paideia grega como aprendizagem e a humanitas romana como cultura, acrescendo o excecional contributo das escolas de pensamento da Ásia de que o budismo é uma síntese evidente. Jaspers fala de quatro momentos: o inicial quando o homem começou a falar, aprendeu a utilizar o fogo e inventou os primeiros utensílios; o segundo (5000 e 3000 a.C.) corresponde ao nascimento das grandes civilizações do Egito, Mesopotâmia, Índia e China; o terceiro é o “tempo axial” e o último refere-se ao final da Idade Média e ao nascimento da ciência moderna.

Lembro este entendimento a propósito de um “momento crucial” que podemos estar a viver. Há circunstâncias decisivas que podem ter consequências muito gravosas, sobretudo quando ocorridas em clima de ódio e de cegueira. Simbolicamente, a eleição presidencial americana de hoje representa uma escolha dilemática, que poderá ter maior ou menor influência, mas põe-nos perante uma decisão dramática, tal como aconteceu, pelas piores razões, com o famigerado “Brexit”, com os efeitos desastrosos conhecidos. Agora estamos perante uma estranha cumplicidade entre o Czar russo e um putativo mandatário norte-americano, num ambiente geral de irracionalidade e de violência, em que a obra clássica de Kant pode ser relida enquanto distopia rebatizada como reflexão sobre a hipótese da guerra perpétua. O Estado de direito e a democracia surgem apoucados pela destruição prática de um sistema ético de valores e do primado da lei, numa perigosa lógica de vazio e de cupidez desumana.

Onde está a Carta das Nações Unidas e a experiência trágica de duas grandes guerras com milhões de vítimas? É difícil manter o equilíbrio sem que se manifeste a critica fácil. E quando alguém se dispõe a acabar com conflitos ancestrais em vinte e quatro horas, lembramo-nos de tristes momentos históricos que levaram à perdição de muitos impérios. Afinal, a história repete-se invariavelmente como tragicomédia. Calígula regressa às nossas mentes. E ouvimos Anne Applemaum no seu recente “Autocracia, Inc.” (Bertrand, 2024): “as autocracias mais sofisticadas preparam as bases legais e propagandísticas antecipadamente (…) concebendo armadilhas para apanhar ativistas pró-democracia antes ainda de estes ganharem credibilidade ou popularidade”. Eis o que está em causa – a prevenção dos valores fundamentais do desenvolvimento e da dignidade humanos. A banalização do mal nasce onde menos se espera, de modo irrepetível e sempre na lógica de alimentar a ilusão sobre um mundo que se pretende dominado por quantos invocam o privilégio de uma verdade abstrata, mesmo usando o eufemismo da pós-verdade que é o sinónimo mais perfeito da mentira. Não se trata de invocar fantasmas, mas de cuidar da realidade, lembrando Karl Popper, que nos ensinou que nunca sabemos o suficiente para poder ser intolerantes. E o momento axial de Karl Jaspers ilustra esta exigência – de que a inteligência e a sabedoria nunca são demais.


GOM