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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MORADA

 

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Querido Camilo, grande e singular amigo de Sousa Franco:

 

No último dia do ano passado, reli Os irmãos Karamazoff e tudo me pareceu evidente, natural, como os pecados, as glórias, os ciúmes e os poderes e o amor e a dor, e tudo tão evidente quanto já me surgira em Shakespeare, e em todos, o tal crime de tentar abrir janelas no mundo que ainda hoje se encontram quietas e abafadas e eu irrequieta e explosiva.

E afinal, como pude, também tentei chamar a atenção para as essências individualmente sentidas, e que de mãos dadas fossem a opção forte face à indiferença de que fala o Papa Francisco.

Um dia retorqui ao meu muito querido Professor Sousa Franco:

Sim rezei, rezei agora mesmo, aqui e ao seu lado, aqui na Basílica da Estrela, mas sabe como?

Meu Deus não permitas que continuem a matar Mozart à nascença e que seja possível o nosso cadinho que aponte um caminho que um dia irá dar à verdade, e que eu, como sabes, só creio em Ti na medida em que aqui e hoje, volto a sentir que se vive sem assumir a essência da nossa condição humana, e que tenho medo de estar a viver um tempo de homem morto no berço de uma qualquer mãe, ela também sem interrogações e Ámen que eu tenho de fazer parte da população activa e esta é a que não conhece que Cesariny disse: - Esse pobre Mário de Sá-Carneiro, que os portugueses suicidaram em Paris. E não seja feita a Tua vontade se dela resultar este medo de não estar nos braços de ninguém. E não dou esmolas pois que me colocam em causa o metabolismo e não conheço outro modo de estar de pé que não este que te mostro, face ao mal-estar quotidiano das injustiças que são tantas que receio gostar do Che Guevara, apesar de ter sido daquelas meninas que repartia com o filho do jardineiro o pão nosso que me não faltava, e nunca gostei do moralismo do Direito Penal que pouco conhece a antropologia do criminoso nato por quem muitos burgueses sentem ternura romântica e intelectual compreensão. E mais, meu Deus!, o quanto eu amo a liberdade e os beijos dela que não reduzam o eu, e ajuda Tu o Professor Sousa Franco que ainda não sabe desta minha ladainha e já me fez exame, ai se fez!, e com ele virei sempre rezar enquanto achar que o meu medo merece a santidade com que Tu me olhas.

Sim, Professor, está mais ao menos tudo aqui no papel. A oração vai até mais longe, mas não me lembro onde coloquei a versão toda. Sim, leve-a para sua casa. A Rua de S. Bernardo que se acautele ainda que o abade francês reformou a Ordem de Cister e eu acredito que estes atrevimentos podem trazer compreensões.

Teresa, disse-me:

Amanhã pode dar a 1ª aula? Tenho um doutoramento trabalhoso.

Sim, claro. A actividade financeira?

Sim. E olhe se acaso tiver outra oração escrita traga-ma, sim? Ficava-lhe grato. Vai para casa? Chamamos um táxi? O que vai fazer neste quase primeiro dia do ano?

Professor, pois vou começar por escutar de novo, C'est la vie de Emerson, Lake & Palmer. Já ouvi o tradicional concerto da Sala Dourada do Musikverein. Um dia será sob a batuta de Franz Welser-Möst, dizem.

Pois Teresa, dizem. E eu digo que gosto muito de estar com a Teresa. Oferece-me sempre a sua verdade e quem lucra sou eu, fomos feitos para comunicar. Afinal e sempre pelo acesso ao conhecimento.

Sim, sempre por aí.

Uma das perguntas que mais tenho feito desde que soube da morte de Sousa Franco, é, se o mundo que me interessa é o desta comunidade organizada em repartições, concursos, processos disciplinares, supostas alternativas, súbitos reconhecimentos de méritos, ou se é aquela dos homens de boa vontade e de rectas intenções onde soube viver o meu querido Professor António Luciano de Sousa Franco. E esta pergunta não a coloco afinal há muitos e muitos anos. É modo de dizer.

Sei que não quero burocratas de homens livres com cinzentas marcas tremendamente humanas. O que eu quero é o grande sopro. A irrupção saudável e única do grande sopro. Também o inesquecível Professor Sousa Franco cheio daquela fantástica Amizade com que me premiou, não se esqueceu de me dizer que a sua Igreja nunca seria a do sabe tudo, mas antes a da insegurança com que se faz ao medo e arrisca a fala do coração, afinal aquela para a qual está menos preparada.

Hoje, meu amigo Camilo, esta a forma quase confessional em que ainda me questiono e questionei ao lado do grande saber e da ternura de um Mestre que se não esqueceu de me transmitir a consciência critica, e quando esta transmissão aconteceu por muitos silêncios, aí se encontrou a sua morada certeira. Não a esquecerei nunca.

Desejo-lhe um ano de 2016 tão tranquilo quanto possa vir a ser.

A Sua amiga

Teresa Bracinha Vieira

 2.1.2016