NA MORTE DE ARIANO SUASSUNA
A morte de Ariano Suassuna, ocorrida há poucos dias, para além da evocação do escritor nas suas abrangências gerais - romancista, dramaturgo, novelista - chama novamente a atenção para uma simbiose entre os grandes criadores literários brasileiros e o desempenho de funções oficiais, ligadas ou não à cultura. Suassuna desempenhou funções de relevo nos governos da Paraíba, seu Estado de origem: mas ao mesmo tempo, marcou todo o ambiente cultural do Brasil com uma poderosa criação abrangendo e percorrendo desde a poesia ao romance, ao teatro e até à adaptação cinematográfica e televisiva.
E tudo isto, curiosamente, numa “irregularidade” cronológica, que o fez estar “ausente” da produção literária e artística com intervalos de anos.
Mas o mais interessante, para lá da qualidade e criatividade propriamente ditas, é a conciliação de um modernismo universal com as raízes locais: ou como escreveu Luciana Stagagno-Picchio, a propósito especificamente do “Romance da Pedra do Reino” (1971), mas numa abordagem generalizável a toda a obra, “Suassuna constrói um mosaico histórico-poético-folclorístico do sertão do Nordeste aí intercalando (…) os folhetos de cordel dos cantadores nordestinos, guardiões de romances medievais”. E cita especificamente a “dimensão fantástica (que) rompe, transborda todo e género literário, faz-se poema épico, odisseia, apocalipse, sem jamais perder, todavia, o imperturbável sorriso da modernidade”… (in “História da Literatura Brasileira”!997 pag. 636).
Esta análise aplica-se ao conjunto heterogéneo da obra de Ariano Suassuna, e designadamente ao seu teatro, que foi aliás representado em Portugal a partir do início dos anos 60. Recordo aqui o que escrevi em 1961 sobre Suassuna, a propósito do “Auto da Compadecida” e de “O Santo e a Porca”, levadas à cena em Lisboa por companhias brasileiras. “Teatro bastante pessoal, de um ritmo simples, a indicar certas origens, ele passa como um sopro arejado” E noutro texto cito mais peças de Suassuna (“A Pena e a Lei”, “Auto de João da Cruz”), referindo em geral “a religiosidade bem popular e bem telúrica que já encontramos no teatro tardo-medieval português”. E exemplifico com uma fala-síntese do “Auto da Compadecida”: “É preciso levar em conta a pobre e triste condição humana. A Carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas” (in “O Essencial sobre o Teatro Luso- Brasileiro” INCM 2005 pag.88).
Refiro ainda Décio de Almeida Prado sobre o “Auto a Compadecida”, peça que “o celebrizou da noite para o dia (e que) constitui uma síntese do seu teatro, mesclando, à maneira de Gil Vicente, irreverência social e genuína fé religiosa. (…) Quanto ao estilo, é o de um teatro não realista procurando exprimir em linguagem supostamente ingénua, caricatural, os arquétipos sociais da coletividade”. (in “A Literatura no Brasil” vol. VI pág. 30).
E há aqui também um substrato político direto ou implícito. Alfredo Bosi, escrevendo em 1977, coloca Ariano Suassuna à cabeça de um grupo extremamente relevante de poetas e dramaturgos modernistas que “graças ao novo contexto sociopolítico reserva toda a atenção ao potencial revolucionário da cultura popular”. Além de Suassuna, são citados Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Dias Gomes: do melhor que se escreveu e representou no Brasil. (in “História Concisa da Literatura Brasileira” 1957 pág. 430).
Daí para cá, como sabemos muita coisa mudou no Brasil: mas nestes quase 50 anos, os autores citados, ao longo de vidas que entretanto se extinguiram – e o último é Ariano Suassuna - só reforçaram o seu prestígio e qualidade.
(cfr. “História do Teatro Brasileiro”, dir. João Roberto de Faria, São Paulo 2012).
DUARTE IVO CRUZ