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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA


   Haydn portrait by Ludwig Guttenbrunn      

  

NÃO POR RECEITA; MAS COMO PROCURA…

 

Franz Joseph Haydn, quartetos e sinfonias, sonatas, "A Criação!" O equilíbrio em tudo, não por receita, mas como procura. Até nas admiráveis "Sete últimas palavras de Cristo na cruz"! Assim, ao som da música, nos balançamos entre a vida e a morte, o sofrimento e o perdão, entre o que julgamos saber e o que definitivamente ainda não conhecemos, entre a escassez e a plenitude. Tudo é graça neste concerto do ser que aspiramos com o estar que somos. Humano é desafiar o caos, o absurdo. Há sempre música na vida quando no silêncio encontramos a música inicial que nos harmoniza. Há sempre uma qualquer hora em que, em cada um de nós, se revela, tão intimamente que só cada um o pressente, esse mistério antigo que levou Antero a falar na "mão de Deus, na sua mão direita" ou Pessoa da "noite antiquíssima e idêntica...igual por dentro ao silêncio"... E fez o Eça exaltar os "regatos espertos" e outros assombros dos campos de Portugal que, ele mesmo, Zé Maria, de tão longe saboreou...


João Ameal não terá sido um historiador maior. Mas, há mais de meio século, deixou no prefácio à sua “História de Portugal” uma afirmação que nunca esqueci: "A História é a nossa vida antes de nós". Lembro-me de ter lido, por essa altura (teria já quinze anos?), da biblioteca da minha Mãe, um livro intitulado "Le Prestige du Passé", que me abriu os olhos para o facto de, no liceu, andar a estudar uma história que prestigiava o passado e enaltecia os nossos antepassados...


Todavia, hoje ainda, esse facto me não incomoda. Marcou um tempo da minha vida, tal como os movimentos culturais, com os seus conhecimentos científicos e técnicos, as suas ideologias e sistemas políticos e sociais, as suas religiões, como relação ao transcendente e aos outros (amigos e inimigos), marcaram o tempo das civilizações na história. Para mim, com maior ou menor prestígio, mais ou menos enaltecido, o passado que a investigação histórica nos vai revelando, desta ou daquela maneira, é sempre "a nossa vida antes de nós". Fui lendo com gosto as histórias da vida privada que, na senda de Georges Duby, tantos historiadores por esse mundo foram percorrendo; entre nós, ainda incipientemente e recentemente, com impulso de José Mattoso, Apesar da escassez de crónicas que registem o quotidiano com a ênfase que outras dão aos factos e feitos militares, políticos, científicos e religiosos, com a ajuda de alguns pormenores que vão surgindo, da arqueologia de sítios de habitação de objetos utensílios de uso comum, bem como das obras de arte e literárias ilustrativas de modos, hábitos e costumes, é possível ir imaginando e reconstruindo, com alguma fidelidade, atitudes e comportamentos, condições de vida, valores e organizações sociais.


Sobretudo, vamos entendendo como o engenho humano foi reagindo e resolvendo situações de abastança e de penúria, de saúde e de doença, na paz e na guerra, em períodos de fixação ou de migração. Desses afrontamentos se tiraram valores orientadores da vida de todos os dias, bem documentados no acervo dos nossos provérbios e ditados. Estes tantas vezes a merecerem o entendimento e a concordância de recém-chegados à nossa terra. Por vezes, através de pequenos ensaios monográficos, tenho-me aberto à perspetiva que junta o quotidiano à "Grande História": a narração de aventuras reais a partir de objetos representados numa pintura de outro tempo pode levar-nos à descoberta de mundos que um olhar, atento ao quotidiano que nos rodeia, encontra... Que prazer me deu ler, por exemplo, o "Vermeer´s Hat" de Timothy Brook!


A escrita e a leitura da História já não são, como na perspetiva romântica da afirmação das nacionalidades, uma exaltação do ego étnico, político ou popular, mitológico. É, sim, cada vez mais, a descoberta de um passado com feitos melhores e piores, com as suas contradições e as suas esperanças, a experiência dessa dialética da condição humana, onde nascem e se transmitem os valores em que nos reconhecemos. Também, o exercício contemporâneo da historiografia tem vindo a recorrer a fontes externas às propriamente nacionais, facultando-nos um entendimento de nós pelo olhar dos outros: Kirti Chauduri ou Sanjay Subramanyam e outros ajudam-nos a compreender melhor situações e figuras históricas que julgávamos só nossas, mas que são mais universais e complexas. Maiores por isso. A chegada dos portugueses à India, que já existia e se agitava quando o Gama lá aportou, surge também, vista do outro lado, como um tecido de encontros, conflitos e alianças, fidelidades e traições, enganos e desenganos, afrontamentos e aculturações que foram construindo a casa-mundo que habitamos. Goa não existe sem Portugal e a Índia. Portugal não é inteiro sem Goa. E quanto, quanto, da Índia só em Goa se revela? 

  

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 03.10.2021 neste blogue.