Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

NASCER É OBRA DE MILÉNIOS…


Meu Caro José:


Saberá, meu unilateral correspondente, melhor, muito melhor do que eu, o quanto gostei do seu relato da Natividade de Jesus: "O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. "Sei bem que me desvio (um pouco?) da contemplação feliz, apaziguadora, certamente necessária, de um Presépio tradicional, inodoro e bonito. Eu, como todos, gentes várias de muitas condições, preciso dessa paz, do instante, curto que seja, em que sinto, no coração angustiado ou perdido, o conforto duma lareira amiga, a visão de uma esperança como promessa antiga... (Uso as ... reticências, sei que o José as não usava nem gostava delas. Mas não é por mim nem para mim que as uso. É tão só porque assim exprimo uma expetativa, que mais não é do que querer aguardar o que ainda não conheço. Modos de ser, concedo...) Mas gosto, sem reticência alguma, da verdade humana, dessa densidade tão sentida do parto de Jesus, do livramento de Maria. Essa foi a Incarnação de Deus. É, como todas as dores de parto, contra todos os atentados contra a vida e todos os desvios dela, o Manuel, o Deus connosco. É, para o cristão, o que a poesia é para Novalis: o real absoluto. Fundador da nossa cultura como visão metafísica do mundo e da história. O Deus que "nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo..."morrerá, infamemente talvez, mas para que, na hora da morte, ao fechar os olhos, cada um de nós os possa abrir com Ele. Deus é como a semente: morre para renascer. E porque não será assim, na nossa condição de trânsfugas, quando até do casulo da lagarta sempre nasce uma borboleta? Ou do coração que está na boca de um poeta analfabeto, se liberta um poema que nos prende o vadio pensamento? Onde se nos promete Deus? Se à sua imagem e semelhança fomos feitos, ele certamente habita o segredo do nosso coração. E é esse o segredo, José, da vida de cada um. O tal que cada um, à sua maneira, desvendará ou não. Por isso sempre penseissenti que de nada vale, nem para nada serve, a santa inquisição ou outra qualquer perseguição. A verdade não se impõe de fora para dentro, nem sequer se demonstra fora da íntima intuição de cada um. Creio muito que, no coração de Deus, a verdade é uma vocação lançada ao coração dos homens. E Deus lá sabe. Posso entender que almas piedosas se amofinem à imagem súbita dessa natividade tão carnal do Deus humanado. Mas assim terá sido, nenhum escrito canónico nem apócrifo o contesta, e, pelos séculos de piedade cristã que se sentia na rudeza do mundo em que ela vivia, tal sentido de pertença de Jesus à terra e à condição dos homens esteve sempre presente. Mas é também parte do humano coração dos povos uma eucaristia, ação de graças. A incarnação de um deus transcendente, nem nos olimpos onde os deuses incarnavam os nossos desejos e fúrias, nem mesmo nos neopaganismos "à Ricardo Reis", em que se contentavam com o espetáculo do mundo, despidos já de qualquer intervenção nas nossas vidas, tem, para os fiéis de religião monoteísta, explicação plausível. É um escândalo. E tal é o espanto, que a sua representação terá de se apoiar em sinais de transcendência. Até o José Saramago talvez não tenha resistido a essa tentação: no seu "evangelho", percebo, a conceção de Jesus terá de ser realizada pela união carnal de Maria com José. Não me escandalizou a ideia, devo dizer-lhe, nesse tempo terrenal (como diria o nosso Gil Vicente), em que o José a pôs por escrito. Nada tem contra a natureza das coisas. Aliás, nem sempre compreendi, antes de estudar alguma antropologia, o horror "religioso" ou "puritano" ao ato carnal - que, na minha religião, tal como a fui entendendo, é sacramento do amor criador, com Deus, entre um homem e uma mulher - nem ganhei horror ao sangue menstrual da mulher; nem me passou pela cabeça que a união de meu pai e minha mãe fosse um ato reprovável... Abençoado gozo que me deu vida! Mas também não vejo por que razão, antes e depois de ter estudado antropologia, eu não hei de perceber que um acontecimento de dimensão cósmica como é a incarnação de Deus, não possa ter, nos textos que nos transmitem testemunhos coevos - que, aliás, ó José, note bem!, não eram de gente interesseira, antes de pessoas simples, muitos pobres, todos talvez agradecidos por esse gesto de Deus, que maravilhava a sua fé! - essa expressão de pureza absoluta, o gesto sem mácula possível, livre de qualquer outro pensamento - desses muitos que nos ocorrem quando em ato sexual, a luxúria ou a violência vêm apagar a ternura e o amor. Somos trânsfugas, sabê-lo-á hoje, bem melhor do que eu. Por isso tanto precisamos dessa "Ó estrelinha do norte, espera por mim, que já vou, alumia o meu caminho, já que o luar me enganou..." Cá em baixo, José, digo-lhe com franqueza: preciso de esperança, não de mitos que os homens construíram e trucidantemente se entreteram a destruir... Como Antero de Quental, tenho um coração que procura a mão de Deus... Amar os outros, amar mesmo este destino de escuridão e saudade, a que tantas vezes nos sentimos condenados, não é fácil. Para nenhum de nós, sobretudo para os que o fado despojou e nós outros desamparámos. Só por isso seja abençoada a virgindade de Maria, pois não é de um insignificante pormenor físico de que então falamos, mas desse indizível sentimento de dignidade inicial, essencial, falo-lhe, José, do intocável que habita o cerne de cada pessoa e que, à falta de melhor, os mais pobres reconhecem na Virgindade Maternal de Maria.


Por isso, à margem e contra as tradições misóginas e machistas de civilizações, culturas e religiões, se foi impondo, no culto popular, a revelação do que não deixamos que alguém desrespeite em nós. No seu "evangelho", o José Saramago tem algum temor (?), ou será premonição temerosa (?), quanto ao sobrenatural de Jesus: concebido pela união de Maria e José, não se livra todavia de um mendigo - anjo? - a quem Maria dá de comer numa tijela, onde ele deitará terra, no fundo da qual brilhará uma luz e que, mesmo enterrada, por obra de José e dos da sinagoga, será sempre semente de uma árvore sempre renascida. Será esse anjo (?) escolta de Maria até ao livramento, aí feito pastor que lhe leva o pão. Bonita imagem, no seu presépio, aliás, só os pobres participam e oferecem ... Se algum dia eu chegar aí acima - pois duvido de que o José possa entretanto voltar cá abaixo - far-me-á o favor de explicar porque insistiu em que o outro José (o carpinteiro) fizesse mais filhos a Maria, e lhes deu os nomes que uma narrativa egípcia, de que se conhecem originais em copta e árabe, atribuiu aos filhos do primeiro casamento de José Nazareno, antes de Maria. Estes textos, como outros coevos, e a tradição dos povos crentes, sempre referem a Virgindade Maternal de Nossa Senhora. Ora, se o Alfredo Marceneiro perguntava, sobre ele mesmo, "há maneira melhor de ser fadista?", não poderei eu inquirir se há maneira melhor de concebermos a incarnação de Deus? Noutro texto apócrifo, uma vida de Jesus em árabe, de origem síria, remotamente persa, diz-se "Em nome de Deus, Benevolente e Misericordioso: no Tempo de Moisés, o profeta, sobre ele permaneça a paz, vivia um homem chamado Zoroastro; foi quem revelou as ciências da magia. Certo dia, em que, junto de uma fonte, ensinava as ciências do magismo, disse-lhes em seu discurso: A virgem engravidará, sem ter conhecido homem, sem que o selo da virgindade tenha sido rompido..." E diz o Corão: "Deus não pode ter filhos. Longe da sua glória essa blasfémia! Quando decide uma coisa, diz: Seja! E ela é." Mas antes disse: "A ela enviámos o nosso espírito... ... Disse-lhe: sou o enviado do teu Senhor, para te dar um filho santo... Como, contestou ela, terei eu um filho? Homem algum se chegou a mim e certamente não sou uma dissoluta... Respondeu-lhe: Será assim, disse o teu Senhor: isso é fácil para mim. Será o nosso sinal diante dos homens, prova da nossa misericórdia." Haverá forças ocultas, ânimos, que nos escapam e perseguimos com símbolos e ritos que possam possuí-las; ou deuses olímpicos, tão cheios de vícios nossos que poderemos corrompê-los; ou divindades sanguinárias que exijam sacrifícios que medularmente nos anulem. Ou, ainda, promessas de homens com memória mais curta e força mais fraca do que a sua própria existência. E aparece esta proposta de um Deus que fecunda, ele mesmo, o ventre de uma mulher humilde e nos diz: Quero ser convosco! Posso acreditar, aceitar ou não. Se disser sim, sei que participo dessa geração. E não preciso de mexer numa história que foi tão lindamente contada.

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 03.11.2013 neste blogue.