O CÉU É A CIDADE DOS HOMENS…
Meu Caro José:
Escreveu, a 28 de Julho de 2009, sobre o mais eficaz instrumento de domínio de corpos e almas... E acrescentava: Refiro-me ao sistema judiciário resultante da invenção do pecado. Mais adiante dizia que lhe assistia, a si, para além do direito de escrever, outro que ao católico está proíbido: o direito a pecar. Ou, por outras palavras, o humaníssimo direito à heresia. Acontece que este católico que sou muitas vezes se interroga sobre a questão do pecado. Talvez por ter ouvido falar nele mais como causa de condenação do que de misericórdia. Mais como estigma de quem peca do que como condição de quem se quer libertar. Em consciência. Diz-nos Jesus que não é o fariseu que se orgulha da própria perfeição quem alcança justiça. Antes será o publicano que se reconhece na humildade da sua imperfeição. O paraíso eterno, no cristianismo, não se compra, nem tem negócio possível. Arrisco até dizer-lhe que não é objecto de cobiça o que, para nós, é inalcançável. Mas será, tão simplesmente, a dolorosa alegria de irmos tentando. Não tenho mais certeza do que esta: os nossos pecados não são razão de condenação exclusiva, são motivo de conversão. A misericórdia de Deus não castiga para destruir. Chama-nos, é uma vocação a melhorarmos. Sei bem que sinagogas, igrejas e mesquitas se vão arrogando o direito - que não têm - de sentenciar e condenar, quiçá sem apelo. E, todavia, ensina-nos o evangelho que a vida de cada um de nós só a Deus pertence e, de si ou do outro, ninguém conhece o dia nem a hora. E cada um de nós, em consciência - nessa abertura de si que só Deus sabe que entrega ontológica é - responderá a esse chamamento ao progresso que sempre deverá transcender-nos: Dou-vos um mandamento novo, amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Codifiquem-se os pecados, como as leis dos homens classificam transgressões, a bem da organização social. Mas nenhum pecado pertence a qualquer sistema judiciário. A culpa só é no segredo da consciência dos homens com Deus. Lembro-lhe o dito do padre Cardonnel, dominicano francês: O pecado é a paixão dos nossos limites... Desgosta-me pensar que um ser humano se compraza e feche no gozo egoísta da sua pequenez. Posso e devo dizê-lo, juntarei talvez a minha voz a outros despertadores. E sei ainda que devo estar atento a outros gritos, mesmo estridentes, que desafinem o meu gosto de mim. Mas não tenho o direito de julgar. Parece-me meridianamente claro que o pecado de que o José fala não é tipicamente religioso. Aliás, o mesmo José Saramago diz que ele é uma invenção humana, e na sua vida terrena teve oportunidades de ver como regimes totalitários, hitlerianos ou marxistas-leninistas, estalinistas, etc., quiseram impor, na esteira da morte de Deus decretada por Nietzsche, religiões cheias de pecados sistematicamente perseguidos por polícias... E então ninguém tinha o direito de ser herege. A heresia, meu caro, não é pecado. Será, para os que se consideram depositários e guardas de uma verdade, um desvio. Para quem vê de longe, ela é apenas outra referência. As ortodoxias de uns são as heresias de outros. Certas ou erradas, umas e outras são humanas. Errare humanum est, e esta é sempre a nossa condição. Não tenho direito ao erro, nem deixo de ter, sou imperfeito, vou aprendendo. Tenho direito à procura da verdade. De quanto cada um de nós a busca, e com que vontade, só Deus é juiz. A verdade não se impõe, aquela que pensossinto foi-me simplesmente anunciada para que a anuncie. E assim, por muito que igrejas várias a pretendam possuir excluindo - com sentenças judiciárias - quem a não entende do mesmo modo, a verdade aí está, porque é, no coração do homem, o amor potencial do Deus que o criou à sua imagem e semelhança. Infelizmente, nas religiões como em tudo, criamos partidos, separamo-nos, fechamo-nos em seitas pretensiosas, como se criássemos Deus à nossa imagem e semelhança e, com ele feito nosso, desenhássemos o universo todo. Esquecemo-nos do nosso tempo e modo, de quanto são relativas a nossa idade e a nossa circunstância. Falta-nos um coração puro, esse que Jesus abençoou: Bem-aventurados os de coração puro, porque verão a Deus. Olho, neste momento em que lhe escrevo, para umas miniaturas turcas do século XVI que nos contam a lenda da ascenção de Maomé. Ainda que ficção da tradição islâmica, a história é claramente de inspiração cristã: certa noite, uns anjos visitaram Maomé, e Gabriel abriu-lhe o peito e arrancou-lhe o coração, que lavou das suas impurezas e repôs. Assim purificado, o Profeta encheu-se de sabedoria e fé, montou Burac, uma prodigiosa égua com rosto de mulher, que, atravessando os sete céus, o conduziu à presença e contemplação do Deus Único. O Paraíso será a recompensa da pregação incessante de Alá contra a tentação antiga dos ídolos feitos à imagem e semelhança dos homens. Mas ai dos que teimarem em não reconhecer a transcendência do Senhor Absoluto... Serão lançados às chamas do Inferno perpétuo! Convite, metáfora, ameaça ou sentença? Estranha condição a humana nossa: à alegria contagiante da descoberta do vero, bom e belo, havemos de juntar o fantasma persecutório a castigar quem não viu ou não terá igualmente entendido. Tentemos compreender a mensagem de Maomé no seu contexto histórico. Diferentemente de Jesus - cujo reino não era deste mundo - Maomé foi um condutor de caravanas, um comerciante, um iluminado que se fez líder político e militar. No início, a propagação do islão faz-se em luta contra interesses e gentes que o perseguiam. A divulgação da nova fé não será subversiva, como fora a do cristianismo primitivo que dava a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Posteriormente, vezes demais as igrejas cristãs nem sempre afastariam a tentação do poder temporal, e confundiriam a liberdade intrínseca e renovadora da mensagem evangélica. Mas os muitos desvios consentidos, até com violência sobre outros, nunca conseguiram permanecer ao ponto de que a vocação do amor, cerne da mensagem cristã, se calasse confundida com qualquer guerra ou opressão. A voz da ternura de Deus tem sempre um incansável regresso aos nossos corações. Tal como, entre os muçulmanos, muitos teólogos e fiéis praticam a djihad como esforço de conversão interior à vontade de Alá, não já como a guerra santa que defendeu e propagou o islão primitivo. Assim entendidas,as religiões serão mais construtivas de paz e justiça do que a ideia de que os homens devem matar Deus. Termino esta,com um abraço e uma citação do Iaiá Garcia do Machado de Assis: -- O coração humano é a região do inesperado,dizia consigo o céptico...
Camilo Martins de Oliveira