O CINEMA ALEMÃO É UM ÉCRÃ DEMONÍACO
Houve alguns anos eufóricos em que o cinema alemão não foi só o cinema alemão. Tal como o crash de 29 foi a mãe dos anos dourados do cinema sonoro americano, o cinema alemão nasceu dos escombros e humilhação da I Grande Guerra. Para lhe darmos dar um parto simbólico, escolha-se “Caligari”, de 1919, prodigiosa soma de teatro, arquitectura, sonambulismo e sombras.
Alimentado pelo teatro e libertando-se dele, foi um cinema de brumas e sexualidade pesada, de golems, aranhas, velhíssimas feiticeiras, e as peles de animais mortos de que fala Heine, o poeta. O cinema alemão é um écrã demoníaco, disse a historiadora Lotte Eisner, ela mesma uma feiticeira de cinematecas. Tendo Berlim como centro do mundo e os estúdios da UFA como centro de Berlim, os filmes desse cinema são filhos do teatro de Max Reinhardt, são primos dos grandes movimentos literários e artísticos, do Expressionismo à Nova Objectividade e são devedores da inquietação arquitectónica patente nos seus gigantescos cenários.
Os estúdios da UFA, rivais de Hollywood, eram um destino sofisticado. Os escandinavos foram os primeiros a vir. Asta Nielsen, diva dinamarquesa, filmou em Berlim, como depois filmou, antes de ser americana, a sueca Greta Garbo. Se pedíssemos o passaporte aos talentos que passaram pelos portões dos estúdios, desenharíamos o mapa da Europa Central. Havia austríacos (o próprio Reinhardt), húngaros (Czinner), romenos (Lupu Pick). Edgar Ulmer, que nos EUA faria o genial “Detour”, lembra-se de começar como assistente de Murnau e trabalhar com as bailarinas checas da Ópera de Praga. Mesmo os franceses, jura Ulmer, desaguavam no Wannsee: Max Linder vinha fazer filmes de duas bobines e Jacques Feyder era um dos realizadores.
A inspiração era cosmopolita. A par dos germânicos Golems e Nosferatus, há filmes sobre Madame Du Barry, Lucrécia Bórgia ou Ana Bolena. A influência alemã irradiou: a inspiração que o cinema soviético procura no vanguardismo teatral de Meyerhold é a cópia da relação entre o cinema e o teatro alemães. Vindos da UFA, já Salazar mandava, Artur Duarte e António Lopes Ribeiro, realizadores do regime, ao elogiarem Eisenstein, é esse espírito cosmopolita, de uma estética sobrevoando contingências ideológicas, que sublinham. Sem a atrapalhação babélica das línguas, o cinema mudo criou um património europeu de inspiração alemã. Nos anos 20, 600 filmes por ano, milhões de espectadores, a Alemanha juntou a Europa, recriou um imaginário europeu. Iria esfacelá-lo nas décadas seguintes.
O mundo nascido no cenário torturado de “Caligari” vai perecer, em 29, no cabaret de “O Anjo Azul”. Morre na voz, nas sombras, no que, obscuro, se mostra ou se esconde nas pernas de Marlene Dietrich, essas pernas que, para completa glória, tiveram de ser americanas.
Manuel S. Fonseca