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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O CONTÁGIO DA ESPERANÇA

 

1. Naquele fim de tarde escuro do passado dia 27 de Março, quando a chuva começava a cair, o Papa Francisco, sozinho, concentrado, em passos lentos, quase alquebrado como se transportasse aos ombros a cruz da Humanidade toda, atravessou, em silêncio, uma Praça de São Pedro deserta e subiu os degraus para uma plataforma fragilmente iluminada e rezou, sozinho. Uma imagem que fica na memória de todos quantos assistiram àquela caminhada lenta, uma das imagens marcantes desta catástrofe. A apontar para a solidariedade mundial de todos e para a esperança. E disse: “Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair da noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem; pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos.” Aludindo à imagem do Evangelho, acrescentou: “Fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda”. Constatando que “nos demos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários”, continuou, sublinhando o que desde a deflagração da pandemia tem sido uma constante sua: “Somos todos chamados a remar juntos, todos carecidos de encorajamento mútuo.” “Estamos juntos neste barco”, ninguém poderá vencer a tempestade sozinho, “só conseguiremos todos juntos”. E incutiu esperança e abençoou o mundo: “Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus.”

 

De lá, do seu confinamento em Santa Marta no Vaticano, todos os dias está presente ao mundo, dando ânimo, esperança, apelando à co-responsabilidade mundial. Para que ninguém se sinta só. Na homilia do Domingo de Ramos, mais uma vez, apelou à solidariedade, lembrando concretamente os mais sós: “Quando nos sentimos encurralados, quando nos encontramos num beco sem saída, sem luz, quando parece que nem Deus responde, lembremo-nos de que não estamos sozinhos.” E foi ao essencial, quando a Humanidade no meio desta pandemia é obrigada a deixar o supérfluo: “O drama que estamos a atravessar impele-nos a levar a sério o que é sério, a não nos perdermos em coisas de pouco valor, a redescobrir que a vida não serve, se não for para servir. Porque a vida mede-se pelo amor.” Aos jovens deixou esta mensagem: “Queridos amigos: olhai para os verdadeiros heróis que vêm à luz nestes dias: não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles e aquelas que se oferecem para servir os outros. Senti-vos chamados a arriscar a vida.”

 

2. No Domingo de Páscoa, há 8 dias, deixou uma mensagem histórica, pensando já no que é preciso e urgente para o futuro próximo. Uma mensagem própria de um líder político-moral global, pronunciada excepcionalmente, como não acontecia desde 1947, a partir do interior da Basílica de São Pedro e não da varanda frente à Praça. Para a sua síntese, inspiro-me na exposição esquemática do jornal “La Croix”.

 

2.1. Dedicada em larga medida à crise causada pela Covid-19, incentivou o mundo, “oprimido pela pandemia, ao contágio da esperança.” A ressurreição de Cristo não é “uma fórmula mágica que faz desaparecer os problemas, mas a vitória do amor sobre a raiz do mal.” E lembrou em primeiro lugar as vítimas do coronavírus, “os doentes, os que morreram, e as famílias que choram o desaparecimento dos seus entes queridos, aos quais por vezes não puderam sequer dizer um último adeus”.

 

2.2. Pediu para não esquecer aqueles que esta pandemia torna ainda mais vulneráveis: “os idosos e as pessoas sós, os que trabalham nas casas de saúde, os que vivem nas casernas ou nas cadeias”. Uma palavra especial, “pedindo força e esperança” para os médicos e enfermeiros, auxiliares, todo o pessoal de saúde, “que em toda a parte oferecem ao próximo um testemunho de atenção e de amor até ao limite das suas forças e muitas vezes até ao sacrifício da sua própria saúde”. Exprimiu-lhes a sua “gratidão”, a eles e “aos que trabalham assiduamente para garantir os serviços essenciais”, e ainda aos polícias e militares que “contribuíram para aliviar as dificuldades e os sofrimentos da população.”

 

2.3. Encorajou os governos “a empenhar-se activamente a favor do bem comum dos cidadãos, fornecendo os instrumentos e os meios necessários para permitir a todos levar uma vida digna e para favorecer, quando as circunstâncias o permitirem, a retoma das actividades quotidianas habituais”.

 

Porque “este tempo não é o tempo da indiferença, todos devem estar unidos para enfrentar a pandemia”, e fazer o necessário para que não se agrave a situação dos que já carecem de alimentos, medicamentos e assistência de saúde.

 

E pediu um alívio das sanções internacionais, “que impedem os países que as sofrem de dar um apoio conveniente aos seus cidadãos” e a redução ou até pura e simplesmente o perdão da “dívida que pesa sobre os orçamentos dos mais pobres.”

 

2.4. Porque “este tempo não é o tempo dos egoísmos”, dirigiu uma palavra veemente sobre e para a União Europeia, que nestas últimas semanas não brilhou particularmente pela sua solidariedade. Sublinhando que “do desafio do momento actual dependerá não só o seu futuro, mas o do mundo inteiro”, lembrou “o espírito concreto de solidariedade que lhe permitiu ultrapassar as rivalidades do passado” a seguir à Segunda Guerra mundial, sendo imperioso que “estas rivalidades não ganhem novo vigor”. E preveniu: “A alternativa é o egoísmo dos interesses particulares e a tentação de um regresso ao passado, com o risco de expor a uma dura prova a coabitação pacífica e o desenvolvimento das próximas gerações”.

 

2.5. Porque “este tempo não é o tempo das divisões”, apelou a “um cessar fogo mundial e imediato em todas as regiões do mundo”, citando nomeadamente a Síria, o Iémen, o Iraque, o Líbano, a Terra Santa, a Ucrânia e os “ataques terroristas perpetrados contra tantas pessoas inocentes em diversos países de África”, e desejou que “os capitais enormes” para o armamento “sejam utilizados para cuidar das pessoas e da melhoria das suas existências”.

 

2.6. Porque “este não é o tempo do esquecimento”, fez votos “para que a crise que enfrentamos não nos faça esquecer outras emergências que trazem consigo o sofrimento de muitas pessoas”, citando as “graves crises alimentares” na Ásia e na África, mas também a situação dos migrantes “que vivem em condições insuportáveis, especialmente na Líbia e nas fronteiras entre a Grécia e a Turquia, a que juntou especificamente a ilha de Lesbos, e a Venezuela.

 

2.7. E concluiu: “Indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são propriamente as palavras que queremos ouvir neste tempo. Queremos bani-las para sempre!”.

 

3. A esperança não se pode confundir com wishfull thinking. Ela tem de ser pensada e activa, implicando uma estratégia correcta e eficaz. Assim, durante a semana, Francisco, convencido de que nos encontramos numa mudança de época, criou uma comissão de peritos, com cinco grupos, para estudar a crise económica, social e política global, já presente e que se agravará na sequência deste flagelo pandémico, e qual o contributo que a Igreja pode e deve dar a nível local e universal.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 ABR 2020