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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O FILHO DE MARIA

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1 -  Um dia, num debate, perguntei ao eurodeputado Paulo Rangel sobre a crítica e até hostilidade à Igreja Católica, também no meio político, a nível europeu. Ele respondeu que essa crítica existe e que a hostilidade se estende também à Igreja ortodoxa, menos às Igrejas protestantes. Mas sublinhou: “Nunca ouvi alguém dizer mal de Jesus”.

Jesus é uma das figuras “decisivas, determinantes”, da História, como sublinhou o grande filósofo Karl Jaspers. Penso mesmo que é, quando se pensa fundo, a figura mais revolucionária. A partir da revelação de que Deus é Amor e de que todos os seres humanos valem para Deus, a ponto de o critério último que decide da salvação definitiva ser determinado pelo que se faz pelos outros nas necessidades mais imediatas, porque é a Deus, mesmo sem o saber, que se faz — “destes-me de comer, de beber, vestistes-me, foste ver-me ao hospital e à cadeia... —, independentemente do sexo,  género, religião, cor, etnia, opção filosófica ou política, foi germinando a ideia da igual dignidade de todos.

Os grandes pensadores tiveram consciência disso. O próprio conceito de pessoa apareceu no contexto dos debates teológicos à volta da compreensão da pessoa de Jesus. Hegel reflectiu bem que a consciência da liberdade, da igualdade e da dignidade veio ao mundo pelo cristianismo. Ouvi o filósofo ateu Ernst Bloch declarar: “Nenhum ser humano pode ser tratado como gado, e isso sabemo-lo pelo cristianismo”. Também escreveu: Jesus agiu como um homem “pura e simplesmente bom, algo que ainda não tinha acontecido”. Jürgen Habermas, o filósofo vivo mais influente, reflectiu que a democracia, que se expressa em eleições livres com igual valor dos votos — “um homem, um voto” —, é a transposição para a política da ideia cristã de que cada homem e cada mulher são filhos de Deus. A liberdade, a igualdade, a fraternidade assentam no Evangelho. Aliás, a consciência dos direitos humanos e a sua proclamação  deram-se em contexto judaico-cristão. Onde é que nasceu a Declaração dos Direitos Humanos? Foi na China? Foi na Arábia? Mesmo se, desgraçadamente, foi e vai sendo preciso impô-la também à própria Igreja enquanto instituição... Mahatma Gandhi deixou estas palavras: Jesus “foi um dos maiores mestres da Humanidade.” “Não sei de ninguém que tenha feito mais pela Humanidade do que Jesus. De facto, nada há de mau no cristianismo.” Mas acrescentou: “O problema está em vós, os cristãos, pois não viveis em conformidade com o que ensinais.” E tem razão.

É necessário confessar e denunciar os erros, fragilidades, exploração brutal, até obscena, por parte da hierarquia eclesiástica, crimes do cristianismo histórico, mas é indubitável que da compreensão dos direitos humanos e da democracia, da tomada de consciência da dignidade inviolável de todo o ser humano, homens e mulheres, da ideia de História e do progresso, da separação da Igreja e do Estado, portanto, da laicidade, de modo que crentes e ateus têm os mesmos direitos, faz parte inalienável a mensagem originária do cristianismo.

O cristianismo tem no seu activo também, e sobretudo, o maior impulso para a esperança no sentido último da existência. Mais uma vez, Ernst Bloch, o filósofo ateu da esperança, viu bem, ao escrever: “O cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’. No século primeiro depois do acontecimento do Gólgota, a ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal, de tal modo que pelo baptismo na morte de Cristo se experiencia a ressurreição com ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível.” De facto, hoje, face ao Além e à vida eterna, o que parece estar em vigência é a indiferença. Mas Bloch prevenia: “Nada impede que dentro de 50 ou 100 anos volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?

 

2 -  Recentemente, também Juan José Tamayo chamou a atenção para a influência de Jesus: “Toda a gente coincide em que Jesus foi uma pessoa eticamente sem mácula”. E apresentou vários testemunhos de cristãos, mas também de não cristãos e até de ateus. Gandhi escreveu: “O espírito do Sermão da Montanha exerce em mim quase o mesmo fascínio que a Bhagavad Gita. Este sermão é a origem do meu afecto por Jesus.” A filósofa Simon Weil: “Antes de ser Cristo, é a verdade. Se nos desviarmos dele para ir ao encontro da verdade, não andaremos muito até cair nos seus braços”. J.-J. Rousseau confessava: “Se a vida e a morte de Sócrates são as de um sábio, a vida e a morte de Jesus são as de um Deus”. Albert Camus: “Eu não creio na sua ressurreição, mas não esconderei a emoção que sinto perante Jesus e o seu ensinamento. Diante dele e da sua história, só sinto respeito e veneração”. Nietzsche, que proclamou a morte de Deus, define Jesus como o “bom mensageiro”, que “morreu como viveu, como ensinou, não para ‘redimir os homens’, mas para mostrar como se deve viver. O que ele legou à Humanidade é a prática: o seu comportamento perante os juízes, perante os verdugos, perante os acusadores e toda a espécie de calúnia e mentira, o seu comportamento na cruz.”

 

3 -  Sobre Jesus há um consenso universal. E poderíamos citar escritores, filósofos, teólogos, poetas, artistas, romancistas, realizadores de cinema, cientistas, representantes das várias religiões...

Para citar um português, fica aí o testemunho da escritora Lídia Jorge, que acaba de publicar na sua obra O Livro das Tréguas este belíssimo e comovente diálogo de Maria com o Filho, Jesus, num poema pregnante, intitulado precisamente “O Filho de Maria”:

 

“Filho, enquanto eu ordenho as cabras, porque não te sentas/

à sombra da videira e não entranças as gavinhas como os outros/

meninos fazem? Não imitas o canto do galo, não desenhas

o burro na areia?/

- Mãezinha, eu estou a ler as escrituras para amanhã/

ir discutir com os sábios./

 

Filho, gostava que carpinteirasses uma mesinha, quatro cadeiras/

 um leito alto, e cativasses uma rapariga como a filha da vizinha/

 a linda Madalena, para a aninhares à noite/

na tua túnica./

- Mãe, eu estou guardado para o indizível, não posso/

envolver-me com descendência humana./

 

Filho, a lua apareceu vermelha, pressinto perigos. Não acompanhes/

o teu primo João, aquele que vive das ervas do deserto e prega contra o rei/

como se fosse um guarda. Podem ferir-te, podem matar-te/

meu estremecido filho./

- Mulher, falas demais, o meu tempo não é este tempo/

melhor é afastares-te do meu caminho./

 

Filho meu, batido, cruxificado, desfalecido, aqui tens a tua mãe/

mais o José de Arimateia, e azeite morno para suavizar as tuas feridas./

Para lavar os teus pés, as minhas lágrimas, e antes que te dêem/

vinagre e fel, um púcaro de água. Estou no chão, a minha alma/

está de rastos. Ainda me ouves?/

- Pai distante, meu pai, só penso em subir ao céu, para me sentar/

à tua direita, além das nuvens e dos astros.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 9 JUN 2019

 

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