O GÉNIO DA LIBERDADE
Jacques Julliard, historiador, pensador político e jornalista morreu com 90 anos. Conheci-o em meados dos anos oitenta, acompanhei-o quando então veio a Portugal para apoiar Mário Soares e segui o seu percurso de pensamento e ação, como editor com Pierre Nora, enquanto braço direito de Jean Daniel no “Nouvel Observateur” e nos últimos anos como editorialista da revista “Marianne”. Tal como Jean-Marie Domenach, saudoso amigo comum, prezou, desde cedo, a influência de Charles De Gaulle e de Pierre Mendès-France. Parecendo uma herança contraditória, o certo é que a defesa da democracia, como sistema de valores e não apenas como um processo de escolha dos governos, deu coerência a essa convergência. Assim, ao longo do tempo, foi chamando à atenção para a importância da história política. “O fim previsível da civilização do trabalho (dizia em 1990) e a sua substituição progressiva por uma organização social que permita aos homens encontrar-se de novo, fazem parte da lógica da evolução do sistema, o sistema industrial e capitalista, sobre o qual todos os grandes teóricos sublinharam o caráter transitório. A dura lei da eficácia, a mobilização de todas as energias para realizar rapidamente a acumulação primária dos instrumentos do poder e a tensão obsessiva para um fim único representam na história da humanidade uma experiência sem precedente, cujos adquiridos são provavelmente definitivos”. No entanto, será necessário mudar, lembrando os benefícios auferidos. Contra a ideia de fim da história, haveria que compreender que vivemos o termo de uma história iniciada nas cidades mercantis da Flandres e da Itália do Norte, devendo compreender-se a importância da consciência social, da liberdade e do reconhecimento mútuo numa sociedade em mudança.
Com a morte do comunismo de 1989, o capitalismo foi chamado a repensar-se, visando o desenvolvimento humano. Por isso, o mundo das ideias tem de defender a verdade (em lugar da pós-verdade) e o primado dos direitos humanos, em vez de nos tornarmos escravos das nossas paixões e cúmplices da tirania e do despotismo. Estudioso e militante dos movimentos sociais, com Michel Rocard, Pierre Rosanvallon e Patrick Viveret, foi um dos teóricos da chamada “segunda esquerda”. Premonitório na apresentação de novas linhas para o contrato social, capazes de compreender a “procura de sentido”, os desafios das tecnologias de informação e comunicação, da digitalização, da ecologia integral, da prevenção da destruição do meio ambiente, bem como da defesa da equidade intergeracional, Julliard deixou-nos as bases para uma cidadania inclusiva assente em instituições mediadoras participativas fundadas na “igual dignidade” e no “génio da liberdade”. Como disse em “La Faute à Rousseau” (1985): “A combinação do sistema de partidos com o sufrágio universal como processo de designação dos governos não é totalmente satisfatória. Certamente que não será substituída de um dia para o outro, mas é urgente completá-la com outros procedimentos. Senão, caminharemos inevitavelmente para um governo não controlado de especialistas, no sentido próprio do termo, para uma tecnocracia”. Rousseau, ao basear-se na “vontade geral”, distinguindo-a da vontade de todos, não deu, porém, valor suficiente ao facto de o Povo não ser uno, mas múltiplo. E a soberania popular tem de o considerar. A valorização da singularidade e da complexidade tem de se fazer em democracia, superando o dilema do cidadão de Genebra entre o individualismo de “Emílio” e o societismo do “Contrato Social”. Eis por que razão o “Génio da Liberdade” se torna essencial, demarcado do neoliberalismo formalista, e compreendendo o que nos ensinaram Alexis de Tocqueville e Norberto Bobbio – sobre a importância mediadora da sociedade civil e da legitimidade do exercício e sobre a incindível relação entre a liberdade igual e a igualdade livre.
GOM