O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (13)
13. Nos cemitérios, o que há?
Apesar de a morte hoje se ter tornado tabu, muitos nestes dias passaram pelos cemitérios. E a pergunta é: Que foram lá fazer? Quando alguém está concentrado num cemitério perante a campa de um familiar, de um amigo, está a olhar para onde?, e o que é que vê realmente?
Há talvez algumas imagens entrecortadas que lhe passam de modo fugaz pela mente. Mas, quando olha, verdadeiramente absorto, embora talvez com os olhos muito abertos para ver, o que realmente lhe aparece é simplesmente e só um abismo sem fundo e sem fim, um vazio ilimitadamente aberto...
Mas olhar e ver um abismo sem fundo e sem fim e um vazio ilimitadamente aberto, isto é, não ver nada, é o que propriamente se chama ver o Mistério.
Quando se vai ao cemitério visitar a campa de um familiar, de um amigo, presta-se uma homenagem, faz-se uma romagem de saudade... É isso: de saudade, no sentido mais fundo da palavra, dito na própria etimologia: a saudade refere-se a uma ausência sem nome e sem fim, que nos faz sentir a solidão (solitate) que nos dói; se o étimo for salutem dare (saudar), então trata-se de uma saudação, com o desejo de que quem partiu esteja bem. Aí, no recolhimento mais intenso, pode erguer-se, sem palavras, uma súplica, um soluço, como forma de tentar balbuciar o Mistério indizível...
A morte é o mistério pura e simplesmente... Perante ela e tudo o que se lhe refere, é como se caíssemos num precipício, onde se estilhaça a capacidade de pensar... Ninguém sabe o que é morrer. Que instante é esse o da morte, mediante o qual se deixa de pertencer ao mundo e ao tempo? Mesmo que assistamos à morte de alguém é de fora que o fazemos... Ninguém sabe o que é estar morto. Diante do cadáver do pai, da mãe, do filho, do amigo, do marido, da mulher, não tem sentido dizer: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo está aqui morto, o meu marido está aqui morto, a minha mulher está aqui morta... De facto, eles não estão ali... Também é por pura ilusão de linguagem que dizemos que levamos o pai ou a mãe ou o filho ou o amigo ou a mulher ou o marido à sua última morada... Como não podemos dizer, quando vamos ao cemitério, que os vamos visitar... Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém.
Pergunta-se então: Porque é que é um crime nefando em todas as culturas e sociedades a violação de um cemitério, se lá não há ninguém? Afinal o que é que está nos cemitérios?
Nos cemitérios, o que há é uma incontível e inapagável interrogação: o que é o Homem, o que é ser ser humano? O que há nos cemitérios é a afirmação de que, seja como for, a antropologia não é redutível a um simples capítulo da zoologia...
Afinal, para onde foram os mortos? Não será que, como acontece nas guerras, andam perdidos, mas um dia havemos de encontrá-los e encontrar-nos? Para onde vão os mortos? Para o nada? Mas, como perguntava o filósofo Bernhard Welte, que nada é esse? O nada vazio e nulo ou o nada enquanto véu que oculta a realidade verdadeira, como quando entramos num espaço de breu e dizemos: aqui, não vejo nada, o que não significa que lá não haja nada, pois pode até acontecer que lá se encontre o tesouro maior?... Para onde vão os mortos? Para a noite total ou, pelo contrário, para a luz plena, de tal modo luz que para nós é noite, como quando, olhando para o sol de frente, ficamos cegos pelo excesso de luz? No final, está a esperança.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 3 de novembro de 2024