O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (7)
7. Sujeito irredutível
Já Freud falou das várias humilhações do homem.
A primeira foi a cosmológica. O homem pensava ocupar o centro do universo. O sol girava à volta da terra. Copérnico, porém, veio mostrar que afinal é a terra que gira à volta do sol. E hoje sabemos que o sol é apenas uma estrela de entre trezentos ou quatrocentos mil milhões da nossa galáxia e como a nossa galáxia há centenas de milhares de milhões...
A segunda humilhação foi a biológica e vem fundamentalmente de Darwin. O Homem não foi directamente criado por Deus como coroa e senhor da criação, pois apareceu por evolução, em que também jogam forças do acaso... De qualquer forma, mergulhamos as nossas raízes na animalidade.
Desde Karl Marx que sabemos mais explicitamente -- e é a humilhação sociológica -- que nenhum de nós fala a partir de um lugar neutro: nas nossas concepções de sociedade, de justiça, de religião, de direito..., somos condicionados pela sociedade e pelo lugar que nela ocupamos.
O próprio Freud contribuiu decisivamente para a humilhação psicológica: o poder da autoconsciência límpida e a arrogância do eu soberano foram abalados, já que há em nós as forças subterrâneas e nocturnas do inconsciente, que não controlamos: a razão não é plena e adequadamente transparente e não somos exactamente o que julgamos ser, pois há em nós também o que é e nos impulsiona sem nós: o “isso” em nós sem nós...
Mais recentemente, fomos confrontados com as humilhações estruturalista e informática. E, presentemente, está aí a revolução gigantesca da Inteligência Artificial, que leva alguns a perguntar se não iremos ser substituídos por máquinas...
Agora, quando se reflecte sobre o Homem, é pelo menos necessário perguntar, como escreveu Javier San Martín, até que ponto a subjectividade humana é um"sujeito-de " para lá de um "sujeito-a"...
Claro que a subjectividade é ineliminável. Mas aquele sujeito cartesiano autoconstituído pela reflexão e de modo soberano ficou abalado. Tomámos consciência de que a alteridade nos constitui. Para virmos a nós mesmos e à nossa identidade, temos de passar pelo outro -- e este outro é o outro humano (por princípio, o primeiro outro que encontrámos foi a mãe), o outro que é a linguagem e a cultura, o outro que é cada um de nós para si mesmo enquanto um outro: as nossas obras, as nossas possibilidades, a nossa escuridão, as nossas esperanças...
De qualquer modo, a humanidade sempre teve consciência de si, sabendo que mergulhava em abismos, onde mora o recôndito, o tenebroso e o incontrolável. A alma humana também é habitada por complexos, medos, conflitos, paradoxos, antagonismos, ambivalências, angústias, que, no fundo mais fundo, têm a sua génese na consciência da mortalidade.
Afinal, não é totalmente verdade o que dizemos: "querer é poder" -- de facto, nem sempre queremos o que podemos e nem sempre podemos o que queremos --, e há aquele "isso" em nós, impenetrável, que nos impede a transparência total de nós mesmos. Quando faltavam categorias filosóficas, científicas ou psicológicas, exprimiu-se essa outra dimensão temerosa de nós sem nós, utilizando, por exemplo, o imaginário dos monstros, com demónios, com híbridos, com figuras de seres humanos zoomorfos e de animais antropomorfos... Mesmo o Evangelho, quando se está atento, é também combate do tenebroso, demoníaco e diabólico, e promessa de reconciliação e de luz.
De qualquer modo, continuará o enigma humano de um corpo que diz eu. E, quando cada um o diz, fá-lo de modo único e intransferível. Pela sua própria natureza, ao mesmo tempo que é abertura à totalidade, cada eu é irredutível, em polaridade com tudo quanto existe. Como se não cansava de repetir o filósofo Julián Marías, "o filho que diz eu é irredutível ao seu pai, à sua mãe, a Deus e a toda a realidade, seja ela qual for."
Assim, não é a mesma coisa perguntar: o que é o Homem? e: quem é o Homem? De facto, o Homem não é um quê, uma coisa, pois é realidade essencialmente aberta, em processo de fazer-se, projectando-se a si próprio em permanência, de tal modo que se vive como paradoxo vivo de em-si-fora-de-si-para- lá-de-si e centro ex-cêntrico, u-tópico, em processo de transcendimento...
Porque nunca é dado, o Homem como pessoa não cabe na definição famosa de Boécio: "substância ou coisa individual de natureza racional". O Homem é um quem, alguém. Evidentemente, vai-se fazendo, e, na medida em que se faz, faz-se algo, mas, precisamente porque é alguém, nega e transcende sempre todos os algos e quês, recusando e superando toda a coisificação. O Homem é sempre mais do que consegue objectivar de si.
No meio de todas as humilhações, ao ser humano reflexivo impor-se-á sempre a subjectividade própria, pois a ciência objectiva só existe para e a partir do sujeito. O sujeito humano — sublinhe-se —, por mais que objective de si, deparará sempre com o inobjectivável, já que a condição de possibilidade de objectivar é ele mesmo enquanto sujeito irredutível. O Homem enquanto sujeito transcenderá, portanto, continuamente a explicação das ciências objectivantes.
Deste modo, como escreveu o filósofo José Gómez Caffarena, mantendo "a nossa condição irrenunciável de sujeitos -- não só de conhecimento, mas também de acção, de decisão, de valoração moral, estética... --, renascerá sempre para nós, nessa perspectiva, a pergunta pelo sentido global da existência".
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 21 de setembro de 2024