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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O HUMOR, O RISO E O DIVINO

  


Pediram-me uma vez uma reflexão precisamente sobre o tema em epígrafe. Aí fica uma tentativa.


Sobre Deus que sabemos nós? Ele é infinito e está para lá de tudo o que possamos pensar ou dizer. O que sabemos dEle sabemo-lo através de Jesus, a sua revelação no mundo.


Através de Jesus, sabemos que Deus é, como se lê na Primeira Carta de São João, Agapê: Amor incondicional. Mas o Evangelho segundo São João também diz que Deus é Logos: Razão,  Inteligência e que tudo foi criado pelo Logos. Por isso, Deus tem sentido de humor, pois o humor é sinal de inteligência. Não é o humor fino revelador de uma inteligência fina?


Logo no primeiro livro da Bíblia, o Génesis, há uma passo belíssimo em conexão com o riso. “O Senhor apareceu a Abraão quando ele estava sentado à porta da sua tenda”, sob a figura de três homens. ‘Onde está Sara, tua  mulher?’ Ele respondeu: ‘Está aqui na tenda. Um deles disse: Passarei novamente pela tua casa dentro de um ano, nesta mesma época, e Sara, tua mulher, terá já um filho’. Ora, Sara estava a escutar à entrada da tenda. Abraão e Sara eram já velhos, e Sara já não estava em idade de ter filhos. Sara riu-se consigo mesma e pensou: ‘Velha como estou, poderei ainda ter esta alegria, sendo também velho o meu senhor?’.” O que é facto é que “o Senhor visitou Sara, como lhe tinha dito, e realizou nela o que lhe prometera. Sara concebeu e, na data marcada por Deus, deu um filho a Abraão, quando este era já velho. Ao filho que lhe nasceu de Sara deu Abraão o nome de Isaac. Abraão tinha cem anos quando nasceu Isaac, seu filho. Sara disse: Deus concedeu-me uma alegria, e todos quantos o souberem alegrar-se-ão comigo.”


Há aqui dois tipos de riso: Sara ri-se para dentro: como é possível, velha, ter um filho? Mas ao filho é dado o nome de Isaac, que, em hebraico, quer dizer “riso”, sendo aqui o riso um riso intenso de alegria: Isaac também quer dizer “aquele que traz alegria”. 


De Jesus diz-nos o Evangelho que chorou: chorou pela morte do seu amigo Lázaro, também sobre Jerusalém. Não se diz que riu. O nome da rosa, de Umberto Eco, anda também à volta dessa questão. Mas já Santo Tomás de Aquino observou  que é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é homem e rir é característica essencial do ser humano. Jesus participou em festas de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos, sem piadas festivas? O Evangelho testemunha que Jesus experienciou o melhor sentimento face à vida e ao seu milagre: o do maravilhamento e do contentamento.


O humor e o riso, repito, são um sinal evidente de inteligência, desdramatizam a vida, permitem viver de modo sadio consigo próprio, fazem bem à saúde, abrem transcendências. A Igreja está atravessada pelo bom humor, porque “um santo triste é um triste santo”. E há piadas fatais. Lá está o dito famoso: “ridendo castigat mores”: a rir castiga-se e corrige-se os costumes. Gil Vicente foi exemplar nisso. Digo: ai da Igreja e dos crentes sem a crítica mordaz, ácida, pela palavra e pela caricatura! O que não se pode é cair na boçalidade, pois esta apenas significa falta de inteligência. O riso também cura a vaidade oca: “Mesmo no mais alto trono do mundo, está-se sentado sobre o cu”, escreveu Montaigne.


Na Idade Média, realizava-se a chamada Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Pegava-se num subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de bispo, colocado em cima de um burro, entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em momentos fundamentais da liturgia, o celebrante e o povo zurravam. Na transmissão simbólica do báculo episcopal, rezava-se o Magnificat naquele passo: “e Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes.” Chamada a pronunciar-se, a Faculdade de Teologia de Paris, justificou-a com a necessidade de dar expansão à crítica, voltando depois a ordem.


A propósito da força crítica da piada e da caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e todo aquele luxo, que blasfema do Evangelho de Jesus, no fausto de uma procissão com cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores... Veio São Pedro à janela do Céu e viu aquilo e, estarrecido, chamou Jesus, que olhou e apenas comentou: “E pensarmos nós, Pedro, que começámos aquilo, entrando de burro em Jerusalém onde fui crucificado... Lembras-te?” Por isso, respondi uma vez a uma jornalista: “Não. Jesus não entraria no Vaticano, porque não o deixariam entrar.”


Francisco socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a Oração do bom humor, oração atribuída a São Tomás Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que não se esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos membros da Cúria Romana, onde tem tantos adversários e até inimigos, a quem falta o bom humor divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/ e que não se amedronta facilmente diante do mal, /mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-me, Senhor, uma alma/ que não conhece o tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as lamentações,/ nem os excessos de stress por causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá-me, Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-me a graça de ser capaz de uma boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria/ e poder partilhá-la com os outros./ Ámen.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 9 de julho de 2022