O SENHOR PESSOA VAI CHEGAR…
Quando há dias, em Óbidos, nos fomos despedir da nossa professora de Filosofia do Liceu de Pedro Nunes vieram-nos à memória mil lembranças. E, sob uma chuva leve, foi possível compreender como a educação constitui a chave para uma sociedade que procura ser melhor, enriquecendo a herança que recebe das gerações que a antecederam. Património é etimologicamente o serviço prestado aos nossos pais, frutificando as suas lições (patres, munus). Daí que a qualidade das aprendizagens seja uma exigência da sociedade que deseja progredir. Maria Luísa Guerra foi um caso exemplar. Os manuais de História que concebeu e concretizou com Maria Fernanda Espinosa (outra mestra inesquecível que partiu na flor da idade) foram pioneiros nos trilhos de uma moderna pedagogia, ao lado das edições irrepreensíveis dos textos de Filosofia para o ensino secundário. Tais educadoras fizeram parte de uma plêiade que deixou muito bons frutos. E não esquecemos Rómulo de Carvalho e o prazer sincero da leitura que nos incutia com os pequenos volumes da sua “Ciência para Gente Nova”, que tantas vocações despertou. A experiência destes nossos professores continua a ser atual. Ensinaram-nos sempre a não cultivar a nostalgia, mas a cuidar dos desafios de hoje, com a sua complexidade. No caso de Maria Luísa Guerra foram os seus alunos que constituíram a sua família até aos últimos dias (depois da morte do irmão, o artista José Guerra). A sua memória prodigiosa, a entrega total à permanente aprendizagem ficaram indeléveis como marcas perenes. Num dos nossos últimos encontros, recordou com entusiasmo um hipotético (ou real) encontro da criança que foi com Fernando Pessoa. “Todos os anos ouvia dizer : o senhor Pessoa vai chegar. Quem era o senhor Pessoa? Um homem triste, magro, vestido de escuro. Alojava-se numa casa baixa que ficava defronte da minha, numa rua branca fora do tempo. A casa onde eu vivia era alta. Tinha na frente um pequeno jardim com três acácias e um gradeamento verde. Chamávamos-lhe o Passeio. A janela de cima, do quarto dos meus Pais, dava-me paisagem: a estrada, um largo com gente que ia à mercearia, um coreto no meio de flores, ninhos de cegonha na torre da igreja. O senhor Pessoa, da sua janela, só via o muro do Passeio, o meu portão, a minha casa cor de rosa e dois olhos que o espreitavam por trás da vidraça. Dois olhos amplos. Depois do almoço, o senhor Pessoa lá estava, colado à janela. Com se não tivesse havido luar. Como se uma flor não estivesse a roçar o coração do vento. Como se uma criança não tivesse nascido. Perguntava-lhe lá de cima, na minha alma de bibe: vem a ares? Porque é que não vai ao pinhal? Não gosta de ouvir as pinhas a cair? E as formigas a correr ? O senhor Pessoa ficava mudo, quieto, absorto, parado no tempo e no destino. (…) E os nossos olhares cruzavam-se cheios de solidão, solidão infinita. Carregados de destino e de interrogação. Às vezes, (raras vezes) via-o sair. Absorto como a noite. Mas voltava depressa para janela. Para a clausura. E olhava. O meu olhar voltava a encontrá-lo. E assim nos demorávamos um no outro. Ele olhando, eu perguntando. Quantos poemas foram feitos neste diálogo? Hoje pergunto, quem é que eu via? Fernando Pessoa? Álvaro de Campos? Ricardo Reis? Bernardo Soares? Alberto Caeiro? António Mora? Outro qualquer?”. Os olhos da mestra iluminavam-se. Diversas vezes nos levou pelos caminhos da literatura para revelar os segredos da existência. E assim nos ensinava a vida.
GOM