O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (I)
O QUE É UMA REVISTA?
A tradição do teatro de revista em Portugal vem de meados do século XIX, e a própria designação do género aponta desde logo a expressão de conteúdos a nível de texto: trata-se, na origem, de uma evocação, memorização ou descrição dos eventos relevantes passados em determinada época – daí, a designação tradicional, aplicada ainda em meados do século passado, de “revista do ano”.
E isto porque o primeiro texto-espetáculo do género sobe à cena no Teatro do Ginásio (que aqui já foi evocado) em 11 de Janeiro de 1851, sob o título programático de “Lisboa em 1850”. Eram seus autores, no que se refere ao texto, Francisco Palha e Latino Coelho, o que justifica aliás o reparo de Luís Francisco Rebello: “poderá surpreender a ligação do polígrafo austero (…) a um género de teatro aparentemente tão frívolo” (“História do Teatro de Revista em Portugal”, vol. I - 1984).
Em 1908 Sousa Bastos, ele próprio autor de revistas, propõe uma definição deste género teatral: “É a classificação que se dá a certo género de peças em que o autor critica costumes dum país ou duma localidade, ou então faz passar à vista do espetador todos os principais acontecimentos do ano findo: revolução, grandes inventos, modas, acontecimentos artísticos ou literários, espetáculos, crimes, desgraças, etc.” assim mesmo: e queixa-se de que “houve épocas em que nas revistas (…) eram festejadíssimas as caricaturas de personagens importantes da política. Tudo isto hoje está proibido. Pois sinceramente, era isso preferível à pornografia de que quase todas as revistas hoje estão recheadas”! (in “Diccionário do Theatro Português – obra ilustrada com mais de 500 photogravuras” - 1908).
Repita-se, estávamos em 1908!
A designação deste género de teatro musicado, a “revista do ano”, decorre de que precisamente se passava em revista, numa sucessão de quadros, os acontecimentos marcantes da atualidade – no caso da primeira que acima citamos, “Lisboa em 1850”… E no mesmo estudo de Rebello, são transcritos diálogos de outra das primeiras revistas levadas à cena - “Fossilismo e Progresso” (1856) de Manuel Roussado. Vejamos um diálogo entre “Portugal e o Enviado do Brasil” acerca do orçamento do Estado:
“Portugal - “Cada vez que oiço falar em orçamento cubro-me todo de suores frios. Oh, eu tenho sido vítima do orçamento (…) Todos se lançam ao orçamento como cães esfaimados”. “Enviado do Brasil - E é verdade. Há sujeitinho que, morto de fome, se senta à mesa do orçamento para comer umas sopas: o caso é que da sopa passa ao cozido, do cozido aos assados, dos assados aos saboreantes, e comeria tudo até arrebentar, se não houvesse outros tão esfaimados como ele (recita com acompanhamento de música) Na mesa do orçamento/comem bem grandes glutões/E que fazem a vapor/Muito bem as digestões”… e seguem-se mais duas quadras do mesmo teor a que o personagem” Portugal” responde – “É isso mesmo sem tirar nem pôr o que me sucede a mim”…
Ora bem: durante mais de um século, o teatro de revista constitui uma janela de crítica politica e social em que, curiosamente, ao longo dos tempos e das sucessivas situações e regimes, houve maior liberdade de espetáculo e de texto do que no teatro declamado. Talvez porque se pensasse que a revista, e designadamente o Parque Mayer, não provocava crises politicas.
Mas se virmos os textos, verificamos que não faltava critica – só que num envolvimento de música e de espetáculo que seria considerado menos subversivo… o que não impedia, evidentemente, a censura previa aos espetáculos, no ponto de vista da politica e dos costumes: mas nesse aspeto, mesmo nos anos de maior fechamento politico a Revista beneficiava de uma “tolerância” bem maior do que o teatro declamado.
Seria pela tradição secular de crítica social, ou por se entender que o Parque Mayer não era subversivo? O certo é que, de 1850 aos nossos dias, a revista gozou sempre de maior tolerância do que outros espetáculos.
E agora, uma referência a autores. Dando como certo que a primeira revista data de 1851, menos certo não será que o género está implícito em expressões dramáticas e em intervenções musicais, no plano da comédia e da crítica, que remontam a Gil Vicente e passam pelos clássicos e pelos românticos. E que autores mais recentes, de Guerra Junqueiro a Bernardo Santareno, escreveram revistas: deles falaremos em próximos artigos.
DUARTE IVO CRUZ