O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (II)
GIL VICENTE, AUTOR DE REVISTAS?
O tema desta crónica não é tão absurdo como possa parecer. Afinal, a revista, género teatral iniciado entre nós, como já vimos, em 1851, pode definir-se a partir de algumas características bem claras: espetáculo dramático-musical, de cariz predominantemente mas não exclusivamente cómico, com vocação critica de costumes e de atualidade, estruturado em cenas ou quadros sucessivos e encadeados por um tema, mas entre si autónomos. Assim é a “revista do ano”, como na origem se designava.
Mas se virmos bem, esta estrutura de espetáculo subjaz e pode ser aplicada ou identificada em autores clássicos, mesmo assumindo que a intencionalidade era outra e os meios cénicos totalmente diversos. Por isso mesmo, iremos encontrar grandes autores dramáticos, escritores e poetas de primeiro plano que escreveram e assinaram revistas: outra coisa não é, por exemplo, a “Viagem à Roda da Parvónia” de Guerra Junqueiro e Guilherme de Azevedo, estreada em Lisboa em 1876, que referiremos em próxima crónica.
Ora, neste perspetiva, não choca considerar Gil Vicente, também aqui, de certo modo o percursor do género…Vejamos pois.
No conjunto da obra de Gil Vicente, cerca de 45 peças, pelo menos 36 remetem diretamente e expressamente para “números musicais”, utilizando já aqui uma terminologia comum na estrutura da revista. Mesmo acompanhando a classificação clássica de comédias, tragicomédias, farsas e obras de devoção, comummente aceite a partir da “Compilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente” publicada em 1562, encontramos numerosos números musicais expressamente referidos: e o facto de eles surgirem também nas tragicomédias não colide com a carater predominantemente lírico, não raro cómico, dessas canções e demais intervenções de cânticos expressamente apontados como tal.
“Gil Vicente alem de autor, também era musico e ator” escreve Lucciana Stegagno Pichio (“História do Teatro Português” 1964). Manuel Carlos de Brito , reconhecendo embora que são muito escassos os dados que nos permitam afirmar que Gil Vicente foi ele próprio compositor”, admite que as intervenções cantadas ou tocadas em diversas peças “foram também compostas pelo autor”. (“Estudos da História da Musica em Portugal” 1989).
João Freitas Branco é explicito quando distingue, na obra de Gil Vicente, a musica de cena, as canções expressamente como tal referidas, as indicações de números musicais e o espetáculo musical que conduziria à ópera: ”Em Gil Vicente, os cantares e tangeres aparecem quando os personagens, na sua ação em cena, cantam e tocam como cantariam ou tocariam como se a coisa se passasse na vida corrente, fora do tablado.” (“História da Musica Portuguesa”1959).
Em qualquer caso, percorre-se o conjunto das obras de Gil Vicente, e encontramos numerosíssimas canções e intervenções musicais como tal expressamente referidas. E é curioso, ou poderá ser significativo, que logo no “Auto Pastoril Castelhano” peça que surge imediatamente depois do iniciático “Auto da Visitação ou “Monólogo do Vaqueiro”, um personagem singularmente denominado Gil, logo na fala inicial, canta: “Menga Gil me quita el sueno/ que no durmo”. E são numerossímas, como acima referi, as intervenções musicais, tanto das comédias como nas tragicomédias ou nas obras de devoção.
Daremos apenas mais um exemplo, entre dezenas que poderíamos citar – este surge no “Auto Pastoril Português”. Perante a imagem da Virgem, o pastor Joane propõe que se termine com cânticos a adoração a Nossa Senhora. Os clérigos rezam o “Himno O Gloriosa Domine” . E os pastores, diz a nota da edição original, cantam “e a letra da cantiga é a seguinte:
Quem é a desposada?/ A Virgem sagrada”... E segue a cantiga até final.
Mas mais: na edição dirigida por Marques Braga (“Gil Vicente – Obras Completas” – vol I, 1958) que aqui temos utilizado, encontramos remissões musicais atribuídas ao próprio Gil Vicente. No “Auto da Sibila cassandra, “acabada assi sua adoração, cantaram a seguinte cantiga feita e ensoada pelo autor(…) Isto bailado de terreiro de três por três: e por despedida, o vilancete seguinte”…
Gil Vicente também músico?
DUARTE IVO CRUZ