O TEATRO DE REVISTA EM PORTUGAL (V)
HERCULANO, AUTOR DE UMA OPERETA
Comecemos por um ponto prévio de análise dramático-musical, perdoe-se o tom enfático da expressão. É que, em rigor, não haverá uma distinção absoluta entre géneros de espetáculo: até que ponto uma peça de teatro musicado é ópera, é opereta ou revista? Quantas óperas existem, ao longo de séculos de criação e produção, em que as cenas declamadas alternam com as cenas cantadas? Quantos números de revista alternam o carácter cómico com o trágico? E mais: Eça de Queiroz, e é só uma referência que veremos em próximo artigo, não escreveu o texto de uma opereta? E quantas revistas introduzem, no conjunto de cenas e números cómicos, pequenas dramatização de teor crítico claramente e assumidamente dramático?
A questão põe-se muito especificamente com um autor de quem não se esperam ligações ao teatro musicado – e referimo-nos a Alexandre Herculano. Desde logo se diga que a produção dramática de Herculano é escassa, três textos apenas, e logo a primeira, “Tinteiro não é Caçarola” (1838) não passa da tradução/adaptação de um vaudeville de Scribe e Duveyrier, a que se seguiu “O Fronteiro de África ou Três Noites Aziagas” (1839) e finalmente “Os Infantes de Ceuta” (1844), libreto de uma peça musicada por António Luís Miró.
Mas mesmo assim: tudo o que Herculano escreveu tem óbvia relevância e qualidade. No caso de “Os Infantes de Ceuta”, estamos perante uma insólita paixão do Infante D. Henrique por uma serva moura. A qualidade e solidez do historiador emerge, tal como já escrevi na “História do Teatro Português”, “na minucia dos cenários, na terminologia militar rigorosa e em certa dimensão romântica da defesa da praça africana “ Transcrevo aí uma fala do Infante:
“Quando ardente paixão tem a ternura/quantas fascinações há no amor virgem:/quanto meigo sorrir, quantas promessas!” E acrescento um comentário de Teófilo Braga: “poesia percebia-se pouco”… (in “História do Teatro Português” pág. 157).
Luciana Stegagno Picchio destaca a dramaturgia breve de Alexandre Herculano e integra-a num movimento geral de produção dramática que, na época tornou-se quase moda: “em meados de Oitocentos não havia em Portugal quem não fizesse teatro, e assim poderá ter interesse respigar do repertório desses anos, o nome do pai de historiografia romântica, Alexandre Herculano”. E cita ainda o “cândido romancista” Júlio Dinis, Rodrigo Paganino, hoje esquecido, João de Lemos e Camilo, este “o mais sanguíneo, imaginativo e , no certo sentido o mais autêntico dos romancistas portugueses”, nada menos! (in “História do Teatro Português” pág. 261)
João de Freitas Branco, na “História da Música Portuguesa” assinala “Os Infantes de Ceuta” como obra de destaque na musicologia de António Luís Miró (1815 – 1853). Este compositor , hoje praticamente esquecido, nasceu em Granada e faleceu no Brasil, onde se fixara em 1850. Entretanto, antes dos 10 anos já vivia em Lisboa, onde fez a sua formação musical e iniciou uma na época brilhante e festejada carreira de maestro e compositor, designadamente de óperas e operetas: assumia-se como compositor e maestro português e como tal o refere Sousa Bastos no sempre citável “Diccionário do Theatro Português” (1908).
O certo é que Miró veio para Lisboa em criança, aqui fez a sua carreira, aqui estreou centenas de obras, entre elas, numerosas óperas e operetas. E o austero e exigente Alexandre Herculano não hesitou em colaborar com ele!…
Aliás, é caso para dizer que o teatro marcou a vida e obra de Herculano muito para lá da sua dramaturgia breve. Os estudos e pareceres recolhidos no volume V dos “Opúsculos” e a colaboração e docência no Conservatório, a colaboração atenta na imprensa, revelam uma participação direta no meio teatral do tempo. Chegou a dirigir o Teatro do Salitre com Castilho e César Perini (cfr. Jorge Custódio e José Manuel Garcia na edição dos “Opúsculo - V” pág. 63)
E no dramalhão ”O Fronteiro de África ou Três Noites Aziagas” introduz com eficácia um personagem cómico, o taberneiro Paio Rodrigues: quando o protagonista D. Pedro toma conhecimento do exilio do Prior do Crato, brada na boa tradição do drama romântico: “(D. Pedro) – Oh! Minha Pátria! Minha desgraçada Pátria!” ao que replica o taberneiro: “(Paio Rodrigues) – Oh! Minha estalagem, minha escavacada estalagem”!
DUARTE IVO CRUZ